A ARTE DE KATIA MACIEL   
Rogerio Luz

O uso e os efeitos das novas mídias devem ser avaliados à luz do seu papel — estético, tanto quanto ético e político — de superar o hiato entre o mesmo e o outro, unificando-os pela produção de uma sensibilidade sempre mais ávida de realidade imediata, de um presente opaco e compacto, que torna as formas de tempos e lugares universalmente equivalentes. Procura-se, quando possível, integrar toda divergência em um projeto comum, capaz de acolher e mesmo reproduzir as “boas” diferenças em seu interior. As atuais reivindicações identitárias rebelam-se contra tal universalidade abstrata, sob o risco de produzir novas particularidades excludentes.

Por isso mesmo, é necessário examinar, com base na importância das questões encaminhadas pelos artistas, as mutações atuais do sujeito da sensibilidade e do que, na situação atual, está em jogo. Formas tecnológicas de controle político tendem a apresentar já reconciliados a percepção e o discurso, o imediato e o mediato, o reconhecível e o estranho, o idêntico e o diferente. Só se percebe do mundo aquilo que dele é dito e mostrado, em sua evidência tornada disponível por meio de clichês produzidos em série. Predomínio do discurso sedutor, retórico e publicitário sobre a imagem e a palavra poéticas.

Observo, na direção que tomam os trabalhos de Katia Maciel, o cuidado de expor o hiato entre identidade e alteridade. Imagens que se abrem para a ambiguidade das aparências e dos enunciados, resistem, na prática, às tentativas de síntese unificadora de sensação e ideia. As imagens que sua arte produz tornam-se sensíveis à força de indeterminação. Ao contrário de muitas obras da chamada arte contemporânea, esses trabalhos não exigem, para sua compreensão, longos textos justificativos, em que o artista — tornado crítico — toma sua proposta, por vezes muito simples, como objeto de um discurso aprofundado. Em Katia, a imagem técnica serve à experiência sensível do corpo em situação, na fronteira difusa entre o físico e o virtual. Nela, essa imagem passa a inscrever o sujeito numa escrita, simultaneamente efígie e grafia: videografia.

A ação de uma arte que se utiliza das novas tecnologias, em que se cultive um novo regime de sensibilidade, renova as possibilidades da escrita poética. Não por acaso, Katia Maciel transita, muito naturalmente, entre arte visual e poesia. A imagem, nem mental, nem meramente perceptiva, faz com que ela seja, a um tempo, mais e menos do que ela própria: epifania, manifestação, aparecimento, mas também desaparição, aniquilamento, extinção. Esse caráter oscilante da imagem, Katia o trata sob o modo da repetição.

Em seus vídeos, a imagem nunca se realiza propriamente, porque não se submete a uma finalidade externa, dependente do conceito, da moral ou da política. A virtualidade da imagem passa pelo atravessamento, na imagem dada, do que não está dado e do que não pode ser dado, do que não está dito nem pode ser dito. Um lance de dados jamais abolirá o acaso. Franja de indeterminação que torna viva a imagem e permite que a arte toque nossa sensibilidade com a força daquilo que repete e reinventa o tempo.

Nos trabalhos de Katia Maciel encontro um modo de prolongar, pelo uso da imagem técnica, as relações atuais da imagem com o pensamento e a linguagem, a partir desta interrogação sobre o tempo. Visões de uma identidade anônima, às voltas com a repetição circular, sem origem nem destino. Passagens e acúmulos que sempre retornam. A história, ao mesmo tempo consagrada e abolida, mostra sua insistência ao observador. Por mais que este procure preencher, com sua própria história, as sequências propostas, seu lugar de fala e de olhar, inscrito na estrutura da experiência que a artista torna disponível, é a da repetição diferida, sem cronologia nem presença. Com isso, Katia reitera seu compromisso com um outro cinema, no qual vemos, experimentamos e pensamos a alteridade do tempo. À narrativa linear, ela substitui uma circularidade em espiral, sem happy end... Somos levados com sutileza ao estranhamento da imagem e à interrupção da fala. No lugar da retórica e de suas argumentações, mesmo implícitas, temos uma poética de repetitivas apresentações em enigma. O participante, em reflexo, retorna a si próprio como enigma.

Encontrei dois poemas que fiz, há algum tempo, provocado por esses trabalhos. Valem, aqui, apenas como registro.


A PARTIR DE VÍDEOS DE KATIA MACIEL
1. De pé na areia frente ao mar — o pequeno sucessivo muro verde de ondas tomba e se levanta.
Leite de espumas derramado umidade do que preço não tem não mercado da natureza sem elogios.
Puro levantar e cair joia d’água destruída renascida sob a ferida de um sol distante.
De pé ali por uma eternidade.

2. Nesta sala escura Que é chamada de arte Faço minha parte: Não projeto nada.
Meu subjetivo Quem se interessar há de? A palavra é um cão Solto na cidade.
Tenho meus desígnios Signos velados Mas não sou designer Curto meu desastre.
Função, estrutura Não sei o que é isso: Rasgo esta clausura Colo ao paraíso. O cinema é tudo O cinema é quase Falsa arquitetura Ou ver a paisagem. Vida de cinema Veio à minha mente — A sessão perdi Repetidamente.
Rogerio Luz é artista, poeta, ensaísta e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
THE ART OF KATIA MACIEL   
Rogerio Luz
The use and effects of new media must be evaluated in light of the role they play — not only from an aesthetic standpoint, but also ethically and politically — in overcoming the gulf between self and other, unifying both for the sake of producing a kind of sensitivity that is increasingly avid of immediate reality, of an opaque, compact present which renders the forms of times and places universally equivalent. One seeks, whenever possible, to integrate all divergence into a common project, capable of embracing and even replicating the “good” differences harboured within its confines. Current identitybased claims resist such abstract universalness, pointing to risks inherent to producing new and excluding particularities.

For this very reason, it is necessary to examine, based on the importance of questions set forth by artists, current mutations of the subject of sensitivity and what is at stake at any given situation. Technological forms of political control tend to present perception and discourse, the immediate and the mediated, the recognizable and the uncanny, the identical and the different as already reconciled. Of the world, one perceives only what is said and shown, evidenced by means of mass-produced clichés. Primacy of a seductive, rhetorical, ad-based discourse on both poetic text and images.

I recognise, in the direction taken by Katia Maciel’s pieces, a preoccupation with exposing the gulf between identity and otherness. Images that open themselves to the ambiguity of appearances and utterances offer practical resistance to attempts at a unifying synthesis of ideas and sensations. The images generated by her art are made sensitive by way of indeterminacy. Unlike many pieces of so-called contemporary art, these pieces, to be understood, do not require long explanatory essays throughout which the artist-cumcritic takes their own, at times quite straightforward, propositions as objects of in-depth discourse. With Katia, the technical image serves the sentient experience of situated bodies placed at the tenuous border between the physical and the virtual. In her pieces, said image proceeds to inscribe the subject into a manner of writing, at one time effigy and graph: videography.

The act of an art that uses new technologies, in which new regimes  of sensitivity are cultivated, renews the possibilities of poetic  writing. It is not surprising, then, that Katia Maciel should transit so graciously from poetry to the visual arts. Image, neither  mental nor merely perceptive, is both more and less than itself: epiphany, manifestation, appearance, but also disappearance, annihilation, extinction. Katia addresses image’s oscillating character through repetition. 
In her videos, image is never fully realized, because it is not subject to an external finality dependent on concepts, morals or politics. The virtuality of the image is likewise an effect of it, the given image, being traversed by what is unsaid, by what cannot be said. A throw of the dice will never abolish chance. Fringe of indeterminacy which renders the image living and allows art to touch our sensitivity with the power of something that repeats and reinvents time.

In Katia Maciel’s work, I find a way of prolonging, by means of the technical image, current relations between image and thought and language, taking as a starting point an inquiry on time. Visions of anonymous identity in its dealings with circular repetition, devoid of origin or destination. Ever-returning passages and accumulations. History, at one and the same time hallowed and abolished, discloses its insistence to the spectator. Try as he might to fill in the proposed sequences with his own personal history, his place of discourse, his place of gazing, embedded as it is into the structure of experience that the artist makes available, is that of a differing repetition, without chronology, without presence. In doing so, Katia reiterates her engagement with an other cinema, in which we see, experience and think about time’s otherness. She overtakes linear narrative with a spiralling circularity devoid of happy ends... We are subtly lured into image’s strangeness and the interruption of speech. In place of rhetoric and its arguments, implicit though they may be, what we have is a poetics centred on repeated, in enigma presentations. It is as an enigma that the mirrored participant returns to himself.

I came across two poems written quite some time ago, under the influence of these pieces. They serve a documentary purpose here.


REGARDING VIDEO PIECES BY KATIA MACIEL
1. Standing over sand, facing the sea —
The small, successive green wall of waves Falls and rises. 
Milk of foam spilled Humidity of that which has no price Non-market of nature without compliment.
A sheer rising and falling Water jewel destroyed and rebirthed Beneath the wound of a distant sun. Standing there for an eternity.

2. In this dark room Which is called art I do my part: I project nothing.
My subjectivity Who would take an interest in it? Words are dogs Loose upon the town.
I have my designs Signs veiled No designer am I I dig my disaster.
Function, structure I don’t know what they mean: I tear through this cloister, Am glued to paradise. Cinema is everything Cinema is almost False architecture Or actual landscape.
A movie life Came to mind — Missed out on the screening Repeatedly.


Rogerio Luz is an artist, poet, essayist and professor at the Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).