A ÁRVORE AÉREA
André Parente
Katia Maciel fez uma série de instalações de grande beleza que misturam fotografia e cinema, mas, sobretudo, a paisagem, a árvore e a floresta em um arvorar que poderia ser considerado uma espécie de devaneio daquilo que Gaston Bachelard chama de “árvore aérea”. Em Inútil paisagem (2007), a artista fotografa os prédios da praia de Ipanema, de frente. Depois, as imagens fotográficas são colocadas uma ao lado da outra, em uma única imagem. A edição apenas cria um lento movimento panorâmico para a direita, fazendo a imagem deslizar. Vemos, uma depois da outra, as entradas e os jardins dos prédios gradeados de ponta a ponta — justamente no bairro em que a bossa nova foi inventada e onde provavelmente a música homônima de Tom Jobim teria sido composta. Ao fim do movimento, a “câmera virtual” para e faz o movimento contrário para a esquerda. O que vemos é que as grades foram retiradas, criando a ilusão de que não há mais grade e a sensação de liberdade.
Se observarmos com atenção, a artista não se importou com os traços deixados pelo trabalho de extração das grades — que por sinal nos fazem lembrar as pinturas quase hiper-realistas de David Hockney —, os quais deixam seus rastros na carne da realidade, ainda que virtual, pois a ausência de paralaxe marca a sensação de uma falta de movimentos na relação entre os objetos em profundidade. A sutileza do trabalho de Katia consiste em chamar nossa atenção para o contraste entre a beleza da paisagem da cidade do Rio de Janeiro e os problemas sociais que a deformam.
Se todos ouvissem Inútil paisagem, quem poderia ter a ideia de gradear a nossa paisagem? Neste trabalho, a criação de uma fotografia em movimento é a condição de possibilidade para a colocação de uma pergunta: grade para quê, se a violência está na separação, na relação cindida entre o dentro e o fora? Dessa forma, de um sintoma da violência, a grade se transmuta em uma de suas causas.
A ausência da paralaxe já mencionada só aumenta o contraste entre o devaneio de liberdade criado pela verticalidade das árvores e a ausência de imaginação dos homens de negócios que hoje habitam esses prédios da orla.
Uma árvore (2010) é um dos vídeos mais potentes de Katia. Uma árvore frondosa do Jardim Botânico é filmada em primeiro plano. A artista usou alguns frames da filmagem para criar a imagem de uma árvore que respira, em um movimento sutil de sístole/diástole. É curioso perceber o movimento de respiração e pulsação de uma árvore. Como se esse movimento fosse capaz de despertar em nós os devaneios da imaginação da árvore aérea que existe em toda árvore. A árvore deixa de ser esse “filtro” que transforma, por fotossíntese, o gás carbônico em oxigênio, transformando este ser estático por excelência em um ser capaz de despertar em nós os maiores devaneios das coisas voantes e frementes, talvez mais do que os pássaros.
Arvorar (2012) é uma instalação interativa na qual, por meio do sopro, os visitantes podem criar movimento na imagem de uma grande floresta, até então estática. Ao fazê-lo, sentimos toda a força criativa que os movimentos vegetais despertam em nossa imaginação. Ao experimentar Arvorar pela primeira vez fui tomado por um frêmito de quase alucinação — “arvorar” é um termo que nos anos 1970 foi muito utilizado para estados alterados da consciência — que me fez lembrar um texto de Rainer Maria Rilke. O texto discorre sobre a situação vivida por um leitor que passeava no bosque procurando um lugar para ler. De repente, ele se encosta a uma árvore e começa sua leitura. Mas eis que ele sente emanar das vibrações da árvore algo que lhe toca profundamente, como se seu corpo fosse tratado pela primeira vez como uma alma. Essa sensação cresce no homem a ponto de ele interromper a leitura para meditar sobre o que se passa. Depois de pensar sobre o encantamento que a troca com a arvorezinha lhe proporcionou, ele conclui: “Eu fui conduzido ao outro lado da natureza.” Essa constatação, vinda de Rilke, nos parece perfeita para exprimir a sensação causada em nós pela paisagem, pela árvore e pelo arvorar de Katia Maciel.
André Parente
Katia Maciel fez uma série de instalações de grande beleza que misturam fotografia e cinema, mas, sobretudo, a paisagem, a árvore e a floresta em um arvorar que poderia ser considerado uma espécie de devaneio daquilo que Gaston Bachelard chama de “árvore aérea”. Em Inútil paisagem (2007), a artista fotografa os prédios da praia de Ipanema, de frente. Depois, as imagens fotográficas são colocadas uma ao lado da outra, em uma única imagem. A edição apenas cria um lento movimento panorâmico para a direita, fazendo a imagem deslizar. Vemos, uma depois da outra, as entradas e os jardins dos prédios gradeados de ponta a ponta — justamente no bairro em que a bossa nova foi inventada e onde provavelmente a música homônima de Tom Jobim teria sido composta. Ao fim do movimento, a “câmera virtual” para e faz o movimento contrário para a esquerda. O que vemos é que as grades foram retiradas, criando a ilusão de que não há mais grade e a sensação de liberdade.
Se observarmos com atenção, a artista não se importou com os traços deixados pelo trabalho de extração das grades — que por sinal nos fazem lembrar as pinturas quase hiper-realistas de David Hockney —, os quais deixam seus rastros na carne da realidade, ainda que virtual, pois a ausência de paralaxe marca a sensação de uma falta de movimentos na relação entre os objetos em profundidade. A sutileza do trabalho de Katia consiste em chamar nossa atenção para o contraste entre a beleza da paisagem da cidade do Rio de Janeiro e os problemas sociais que a deformam.
Se todos ouvissem Inútil paisagem, quem poderia ter a ideia de gradear a nossa paisagem? Neste trabalho, a criação de uma fotografia em movimento é a condição de possibilidade para a colocação de uma pergunta: grade para quê, se a violência está na separação, na relação cindida entre o dentro e o fora? Dessa forma, de um sintoma da violência, a grade se transmuta em uma de suas causas.
A ausência da paralaxe já mencionada só aumenta o contraste entre o devaneio de liberdade criado pela verticalidade das árvores e a ausência de imaginação dos homens de negócios que hoje habitam esses prédios da orla.
Uma árvore (2010) é um dos vídeos mais potentes de Katia. Uma árvore frondosa do Jardim Botânico é filmada em primeiro plano. A artista usou alguns frames da filmagem para criar a imagem de uma árvore que respira, em um movimento sutil de sístole/diástole. É curioso perceber o movimento de respiração e pulsação de uma árvore. Como se esse movimento fosse capaz de despertar em nós os devaneios da imaginação da árvore aérea que existe em toda árvore. A árvore deixa de ser esse “filtro” que transforma, por fotossíntese, o gás carbônico em oxigênio, transformando este ser estático por excelência em um ser capaz de despertar em nós os maiores devaneios das coisas voantes e frementes, talvez mais do que os pássaros.
Arvorar (2012) é uma instalação interativa na qual, por meio do sopro, os visitantes podem criar movimento na imagem de uma grande floresta, até então estática. Ao fazê-lo, sentimos toda a força criativa que os movimentos vegetais despertam em nossa imaginação. Ao experimentar Arvorar pela primeira vez fui tomado por um frêmito de quase alucinação — “arvorar” é um termo que nos anos 1970 foi muito utilizado para estados alterados da consciência — que me fez lembrar um texto de Rainer Maria Rilke. O texto discorre sobre a situação vivida por um leitor que passeava no bosque procurando um lugar para ler. De repente, ele se encosta a uma árvore e começa sua leitura. Mas eis que ele sente emanar das vibrações da árvore algo que lhe toca profundamente, como se seu corpo fosse tratado pela primeira vez como uma alma. Essa sensação cresce no homem a ponto de ele interromper a leitura para meditar sobre o que se passa. Depois de pensar sobre o encantamento que a troca com a arvorezinha lhe proporcionou, ele conclui: “Eu fui conduzido ao outro lado da natureza.” Essa constatação, vinda de Rilke, nos parece perfeita para exprimir a sensação causada em nós pela paisagem, pela árvore e pelo arvorar de Katia Maciel.
André Parente é artista, pesquisador e professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
THE AERIAL TREE
André Parente
André Parente
Katia Maciel has done a series of very beautiful installations, mixing static photography and cinema, but, above all, landscape — tree and forest in an “arvorar” which could be considered a kind of daydream off that which Gaston Bachelard names “the aerial tree”. In Inútil paisagem (2007), Katia Maciel photographs buildings facing the Ipanema beach. Afterwards, the photographic images are placed one after the other, forming a single image. Editing is limited to creating a very gentle, subtle motion from left to right which makes the image glide ever so slightly. We see, in succession, entryways and gardens pertaining to buildings that have been barred — right in the neighbourhood that saw the invention of bossa nova and where Tom Jobim’s very own Inútil paisagem may have been composed — thirty years on. At the end of the movement, the “virtual camera” stops and begins to move in the opposite direction, from right to left. What we them see is that the bars have been removed, creating an illusion that there are no more bars, and generating an apparent sensation of freedom, even it is only visual.
If we watch the image closely, we see that the artist did not mind the traces left but the extraction of the bars — which bring to mind David Hockney’s nearly hyper-realist paintings —, which leave imprints on the flesh of reality, even if it is a virtual reality, because the absence of parallax reinforces a feeling of lack of movement in relation to the objects verticalized in depth. The subtlety of Katia’s work consists in calling our attention to the contrast between the beauty of Rio’s landscape and the social problems which have deformed it, through a kind of lack of sensibility.
Who could possibly think, having heard Inútil paisagem, of placing bars on our landscape? In this piece, the creating of a moving photograph is the condition which renders possible the advancement of a question: what use are bars, if violence resides in the separation, in the broken relation between inside and outside? This way, the bars are transformed from symptoms of the violence to one of its causes, even if only virtual. Curiously, the absence of parallax only serves to reinforce the contrast between our daydreams of freedom, induced by the tree’s verticality, and the absence of imagination of the businessmen who are now residing in those seaside buildings.
Uma árvore (2010) is one of Katia’s most potent videos. A leafy tree at the Botanical Gardens is seen in the foreground. The artist has used some of the shoot’s frames in order to create the image of a breathing tree, in a subtle systole-diastole motion. It is curious to perceive the breathing and pulsing motion of a tree. As though such a motion were capable of awakening in us the daydreams of the aerial tree that exists in every tree. The tree ceases to be this “filter” which transforms, via photosynthesis, carbon gas into oxygen, making this being, static par excellence, in a being capable of awakening in us the greatest daydreams of flying, trembling things — maybe even more so than birds.
Arvorar (2012) is an interactive installation in which, by means of breath, visitors are able to create a movement in the image of a great — and up until then, static — forest. In doing so, we feel all the creative force that vegetal movements awake in our imagination. Experiencing Arvorar for the first time, I was taken by a nearhallucinatory trembling — “arvorar” was a term very much in usage in the 1970s that designates altered states of consciousness —, which reminds me of a Rilke text. The text elaborates on the situation lived by a reader who wondered a grove looking for a place to read. Suddenly, he leans on a tree and begins reading. But then he feels, emanating from the vibrations of the tree, something that touches him deeply — as though his body were being treated as a soul for the first time. This sensation grows on the man, up to the point where he is forced to interrupt his reading and meditate on what is taking place. After thinking about the enchantment that his exchange with the little tree has given him, he concludes: “I have been taken to the other side of nature.” This statement, coming from Rilke, seems to us perfect to express the feeling cause in us by Katia Maciel’s landscape, the tree and the “arvorar”.
André Parente is an artist, researcher and head professor of the School of Communication at the Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
If we watch the image closely, we see that the artist did not mind the traces left but the extraction of the bars — which bring to mind David Hockney’s nearly hyper-realist paintings —, which leave imprints on the flesh of reality, even if it is a virtual reality, because the absence of parallax reinforces a feeling of lack of movement in relation to the objects verticalized in depth. The subtlety of Katia’s work consists in calling our attention to the contrast between the beauty of Rio’s landscape and the social problems which have deformed it, through a kind of lack of sensibility.
Who could possibly think, having heard Inútil paisagem, of placing bars on our landscape? In this piece, the creating of a moving photograph is the condition which renders possible the advancement of a question: what use are bars, if violence resides in the separation, in the broken relation between inside and outside? This way, the bars are transformed from symptoms of the violence to one of its causes, even if only virtual. Curiously, the absence of parallax only serves to reinforce the contrast between our daydreams of freedom, induced by the tree’s verticality, and the absence of imagination of the businessmen who are now residing in those seaside buildings.
Uma árvore (2010) is one of Katia’s most potent videos. A leafy tree at the Botanical Gardens is seen in the foreground. The artist has used some of the shoot’s frames in order to create the image of a breathing tree, in a subtle systole-diastole motion. It is curious to perceive the breathing and pulsing motion of a tree. As though such a motion were capable of awakening in us the daydreams of the aerial tree that exists in every tree. The tree ceases to be this “filter” which transforms, via photosynthesis, carbon gas into oxygen, making this being, static par excellence, in a being capable of awakening in us the greatest daydreams of flying, trembling things — maybe even more so than birds.
Arvorar (2012) is an interactive installation in which, by means of breath, visitors are able to create a movement in the image of a great — and up until then, static — forest. In doing so, we feel all the creative force that vegetal movements awake in our imagination. Experiencing Arvorar for the first time, I was taken by a nearhallucinatory trembling — “arvorar” was a term very much in usage in the 1970s that designates altered states of consciousness —, which reminds me of a Rilke text. The text elaborates on the situation lived by a reader who wondered a grove looking for a place to read. Suddenly, he leans on a tree and begins reading. But then he feels, emanating from the vibrations of the tree, something that touches him deeply — as though his body were being treated as a soul for the first time. This sensation grows on the man, up to the point where he is forced to interrupt his reading and meditate on what is taking place. After thinking about the enchantment that his exchange with the little tree has given him, he concludes: “I have been taken to the other side of nature.” This statement, coming from Rilke, seems to us perfect to express the feeling cause in us by Katia Maciel’s landscape, the tree and the “arvorar”.
André Parente is an artist, researcher and head professor of the School of Communication at the Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).