eva disse sim
Danielle Magalhães
aquela frase é serpente mar
Katia Maciel
– Qual é a sua praia?
– Um jardim.
Entre – jardim e mar: um paraíso perdido – porque nunca achado.
A Queda?
Não a língua pura de Adão, que nomeou tudo pela primeira vez, mas a língua impura de Eva, aquela que se ocupou do gozo – desse mar – que fala a língua das serpentes, das árvores, das pedras, dos pássaros, dos equívocos, daquilo que não chega primeiro, daquilo que não chega, daquilo que espera.
praia a pino é uma história de começos. “Houve um dia em que…” O começo do mundo? O dilúvio? Contar história a quem? O que dizem as estrelas? Sorte ou azar? Oráculo. Sonho. Jogo de cartas. Lance de dados: “o outro lado pode ser o mesmo”. O verso do verso. A vida lida nos grãos. A vida contada pelo ponto de vista de um grão de areia. No começo era uma fábula.
No começo era a história de Eva e da Maçã, disse Hélène Cixous em “Extrema fidelidade”.
No começo era o amor, disse Sócrates, disse Jacques Lacan, disse Jacques Derrida, mas não disse a história que não foi contada pela perspectiva da mulher que primeiro se ocupou do gozo na cultura ocidental.
Uma árvore diz sim.
Eros, árvore e fábula estão diretamente relacionados neste ecossistema em que tudo começa pelo engano: “ah que engano cometi pode ser uma frase de eros”. Por um lado, é preciso “não confundir”. Nessa advertência, escutamos: é preciso saber separar.
Entre uma outra Teogonia e uma outra Cosmogonia, no começo era a separação: “não confundir eros com bugalhos”. Não há fusão.
Nessa história de deuses, planetas e animais, “no cimo das nuvens” lemos a separação dos deuses: Hera é aquela que caminha, arruma, espera. Zeus não caminha, dispersa, caça.
Nessa praia a pino, as nuvens se precipitam: é o tempo do meio-dia, quando não há sombra. Quando o tempo congela e a semana não passa e só há repetição do mesmo. Aqueles que são acometidos pelo demônio do meridiano e aqueles que são acometidos por Eros partilham do mesmo gesto de pretender “abraçar o inapreensível”, como disse Giorgio Agamben em Estâncias.
Nesse tempo em que “um dia é mesmo dois, às vezes”, duas vozes, contraditórias, coexistem: confusão das línguas.
Esse não é o primeiro de livro de Katia, mas cada livro é como se fosse o primeiro. Não porque ele nomeia pela primeira vez, em uma filiação adâmica, mas porque ele fala, radicalmente, uma língua evânica. Em A hora de Clarice Lispector, Hélène Cixous fez uma releitura de A maçã no escuro: ela aceitou a maçã de Clarice e inaugurou outra Eva. Essa maçã já tinha comparecido no ensaio “Extrema fidelidade”, em que Cixous leu romances de formação a partir de Clarice como uma educação libidinal em que o que está em jogo no nascimento de alguém como escritor, escritora ou artista é a “primeira história de todas as histórias humanas, a história de Eva e da maçã”. Ler a gênese de uma escritora pelo mito fundador ocidental do Gênesis mostra que nascer pelas palavras, nas palavras, com as palavras, “trata-se da maçã: comê-la ou não”.
Uma história de Eva e da Maçã é uma história que pergunta: o que vai à boca? Alimentar leões, dar de comer, alimentar a presa e morrer na praia, virando isca de peixe, certamente, não pressupõe a verticalidade da linguagem hierárquica entre humanos e animais que estava em jogo no ato de nomear de Adão, obediente ao Pai, feito à imagem e semelhança do Pai. Aqui, alimentar a fera e virar isca é se expor à maçã.
Katia também aceitou a maçã de Clarice: “a maçã continua o vermelho no escuro”. Nesse romance de formação, a deformação de um romance: no verso, uma maçã e uma faca. Partir a metade em dois.
praia a pino é uma história natural: dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. A enciclopédia explica, a física explica, a química explica. Mas dois raios caem no mesmo lugar duas vezes.
Como pendurar o que cai?
Como pendurar uma água que escorre?
O ar é abafado, úmido: Jardim das Delícias? A gênese é um verdadeiro “jardim dos fungos”. No começo era o resto. “A particularidade desse jardim/ é ser visto apenas por insetos”.
Na luz de um céu a pino, talvez os fungos vejam sombra.
Tudo fica fora de ordem. Uma casa range. Precipita uma grande tempestade. Eu e você em diálogos ruidosos ou em uma voz dissonante. Na paisagem que se repete (praia a pino) irrompe uma paisagem fora de série: uma praia pendurada na janela.
Insetos, animais e fantasmas estão dentro de casa. O céu estala.
Na precipitação, sempre há sombras.
Vários começos se precipitam: no princípio era... um homem carregando uma paisagem? “o homem é a paisagem ou a vaca na vaga praia ela diz”. Qual é o ponto de vista? Qual é a perspectiva de um inseto? Qual é a perspectiva de uma árvore?
Uma árvore diz sim.
Em conversas arejadas, “ele respira árvores expira contos de fada”: uma cegonha se apaixona pelo porco-espinho, o animal da poesia para Jacques Derrida. O animal que sempre se lança ao fora e se expõe ao risco da catástrofe: “ele deixa pegadas em prosa”.
Um livro apinhado de gente: poemas destinados, poemas dedicados. Diálogos. Perspectivas, enquadramentos. Qual é o referente?
No olhar mareado, as posições sofrem deslocamentos. Com a visão embaçada, não há um ponto de vista fixo. Da perspectiva do mar, o que se vê? Nos versos de “marés morel”, lemos o que fica do romance A invenção de Morel. Na cena, a outra cena: as ações mudam, o verbo é tresloucado: “nadar” desliza para “embaçar” que desliza para “esquecer”; “ver uma mulher” desliza para “ver uma mulher olhando o mar” que desliza para “ver uma mulher embaçada”. No começo era uma outra cena. No olhar mareado, a vertigem: eis a relação entre Eros e mar.
No ensaio “A questão do ‘Eros’ na obra de Benjamin”, Jeanne-Marie Gagnebin cita uma frase de Walter Benjamin: “A vida de eros se acende graças ao longínquo”. Diferentemente de “distância” [Distanz], “longínquo” [Ferne] em alemão implica uma inapreensibilidade, uma impossibilidade de apropriação, uma distância inultrapassável.
Eis, em uma volta a mais, a relação entre Eros, mar e sonho: no poema “enquanto sonho”, o seguinte verso comparece três vezes: “pássaro é a única palavra que consigo dizer”. As asas de Eros sob o efeito das asas da serpente de Eva. O sonho dá asas à cobra: “com ventre ventríloquo com línguas opostas”. Eva, a mãe dos viventes, a primeira mulher que se ocupou do gozo, não fala uma língua pura.
Walter Benjamin vinculou a poesia à língua pura de Adão, aquele que nomeou pela primeira vez, relegando Eva ao pecado original que implicou a Queda da língua pura adâmica. Em 2025, uma grande tempestade cai sobre o Benjamin de 1916. Uma língua evânica filia a poesia àquela que conversou com a serpente sem hierarquia, sem dominação. Ela não fala uma língua pura. Com a boca cheia de poeira, ela gesta uma língua láctea: a via láctea é um caminho no céu noturno que, na verdade, é uma nuvem de poeira.
Estar na língua do sonho, de algum modo, é estar em uma língua materna como uma via láctea: nessa via, o caminho é nebuloso, vê-se muito pouco, embaçado. Por isso, a língua materna não é necessariamente a da mãe, nem a da pátria, mas a que nos liga a essa via láctea, a essa via em que a poeira nos diz. No começo era o pó.
Eros, com suas asas, nutre-se do longínquo: conduz-nos a essa via. Só há erotismo se houver vertigem, curvas sinuosas, velas ao vento, velamento. Eros pousa nas velas, nos véus (para falar com Derrida e Cixous) que desviam o curso do caminho e embaçam a visão.
praia a pino versa o olhar mareado, o começo de tudo: o étimo de verso, vers, e sua variante, vert, de onde se depreendem palavras como verter e vertigem. Em francês, vers é tanto preposição, “para”, “em direção a”, como substantivo, “verso”. No verso escutamos o eco do resto, nas homofonias que ressoam ver, “verme” e vert, “verde”. Vamos em direção ao “jardim dos fungos”.
praia a pino verte, derrama, transborda. Versa: faz passar de um lugar para outro.
Por isso, nos dois imperativos que comparecem neste livro, não lemos a obediência, mas a libertação: “voe” sustenta-se nas asas de Eros: “ai, meu amor”, o verso verte. No poema anterior, outro imperativo: “sonhe”. No sonho, uma imagem inscreve marcas; na imagem, está escrito: “SONHE”. Se, em versos outros, lemos, na outra cena dessa praia a pino, um deserto em que há “portas fechadas”, neste poema há “o ar solto nas duas fechaduras”. Arejado, o enquadramento abre as janelas: “um quadro escrito - SONHE”. Grande para ser bem vista à distância, a imagem que chama à via láctea, trazida nas asas de Eros, vem do que faz borda, não da devastação.
Todavia, em cada pino, uma volta do parafuso faz tudo girar: o oráculo serpenteia. Escutamos a reverberação do estrondo de uma onda: “com seu nome esquecido ao fundo/ afundava penhascos a finisterra/ tão longínqua quanto uma fábula/ reverberava o estrondo daquela onda/ que varria o dia de uma só vez”. Pontos de virada sempre são a pino: fincam um antes e um depois, um começo determinado por um fim.
Na palma da mão de alguns, o infinito; na ponta dos dedos dela, a maçã. Por isso, tentar agarrar o infinito pode ser um grande problema. Não se come a cesta inteira: a completude é devoração. Morder a maçã não é devorá-la, esse é o saber desse sabor. Caso contrário, em um giro a pino como a bola de cristal do mundo, a maçã que faz amar torna-se mortífera, venenosa como “a maçã tóxica”. Morder a maçã é destiná-la, passar adiante, fazê-la girar. Devorá-la é ler notícias de ciúme, de vingança, aquela que sempre cobra mal: fantasma não acorda nem assombra: assoma. A soma: “o recebimento de valores/ em que mais um dia valia menos”. O que é do mar, o mar leva: “não há maré em que caiba o que se carrega a dois”; “no repente a espuma leva tudo”.
A pino: queimar torradas, sentar na aba da sombra do chapéu do outro, esquecer o forno ligado. O mar não está para peixe: há crimes, desencontros, amores em fuga para outras paisagens de jardins aterrados: no risco, melhor voar para não ser pendurado, capturado pela obscenidade do pino.
Em outro giro, escrever a pino pode ser escrever com o martelo. Não como Nietzsche, que proferiu Ecce Homo, mas como um Don Juan que finalmente se dividiu e, pela metade, disse “eu sou a queda”. Depois da queda, os cacos se juntaram como restos desencaixados que ecoaram: “eu, hein?”.
Colocar o pino sob efeito da Queda: “houve um tempo em que todas as coisas cresciam juntas”, disse uma Cosmogonia. praia a pino inaugura uma outra Cosmogonia: as coisas não nascem, crescem, morrem juntas. Elas podem andar juntas se e somente se mudam de lugar, deslocam, separam, reposicionam. Colocar o pino sob o efeito do desencaixe, não do encaixe: um pino pela metade, um pino cortado ao meio. No procedimento de jogo de vozes que já é uma assinatura de Katia, escutamos o “pi” e escutamos o “no”. Pronomes viram personagens, palavras viram personagens, uma palavra ao meio vira dois personagens: não há relação sexual, não há unidade, completude, fusão. Só há mal entendido: garrafas ao mar nunca chegam ao destino, só pelo desvio.
Eva e Eros cometem enganos: tudo fica pela metade, como a missa, que só entendemos, se entendemos, pela metade. Eva ri de missas e livros que preferem maçãs verdes mas, do avesso, refletem suas lombadas vermelhas.
“a conversa é sobre outra coisa”, é sempre sobre outra coisa. Se uma mulher conversa com uma serpente, uma pedra pode falar com um artista. Do ponto de vista da pedra, ela sonha com o artista que está plantado em seu jardim: “o presente/ é sempre hiato, passagem entre as pedras.” O tempo presente sob o efeito da organicidade do tempo da matéria-bruta é passagem entre.
Caminhar na “rua estrada” é andar de ponta-cabeça. Como uma árvore, na planta do pé, longos dedos se estendem: mãos e braços dão o passo. O cogito sob efeito do sonho mostra que “pensar é estar distraído”, pensar é andar com a cabeça nas nuvens. No caminho, quem pensa é a paisagem que pede passagem: onda, rio, deserto, ilha, montanha, rosto.
Uma árvore diz sim.
Enamorar, sabemos, vem por uma imagem, por um imaginário: amar começa pela fantasia. A imagem que imaginamos é um fantasma, a nossa cena fantasmática. A lírica trovadoresca e os poetas do dolce stil novo deixaram como herança para a poesia ocidental moderna uma compreensão de amor que passa necessariamente por um processo fantasmático. Em Estâncias, Agamben relaciona poesia, pensamento e amor pelo que esses se constituem de um caráter rigorosamente fantasmático. Para abordar essa relação, o filósofo retoma a psicologia medieval, que concebe o amor como um “processo essencialmente fantasmático, que implica imaginação e memória”.
Para os neoplatônicos, o amor chega pelos olhos, havendo uma ênfase na visão em um entendimento do amor como um espírito que fere através dos olhos, como uma “intervenção demoníaca ou até mesmo como doença mental”. Na cultura medieval, diferentemente, “o fantasma emerge ao primeiro plano como origem e objeto do amor, e o lugar próprio de Eros se desloca da visão para a fantasia”. Ainda não havia, nesse momento, uma dicotomia entre amor e pensamento, porque “o fantasma (o pneuma fantástico), origem e objeto de amor, é precisamente aquilo em que, como em um espelho, se efetua a união (copulatio) do indivíduo com o intelecto”.
Ao analisar a poesia medieval de Cavalcanti, Agamben chega à conclusão de que “a experiência do círculo pneumático vai dos olhos à fantasia, da fantasia à memória, e da memória a todo o corpo, semelhante à fórmula neoplatônica do pneuma fantástico”. Assim, nos poetas de amor, fantasma e pneuma convergem: o objeto de amor é uma imagem e, ao mesmo tempo, um pneuma, uma substância que corre pelo corpo. O intelecto, por sua vez, só é possível pela aparição do fantasma que se fixa na memória: “basta a aparição do fantasma na fantasia aparecer fixada na memória para que imediatamente se forme no intelecto”. Ou seja, o intelecto é a fixação do fantasma na memória. Eros, como fantasma e pneuma, imagem e corpo, ao mesmo tempo, é a condição do intelecto, do pensamento.
Em Ninfas, encontramos essa mesma abordagem quando Agamben discorre sobre os poetas estilonovistas e pontua uma diferença entre imaginação e pensamento. Uma vez que “a imaginação circunscreve um espaço em que não pensamos ainda, no qual o pensamento se torna possível somente por meio de uma impossibilidade de pensar”, é na imaginação, na imagem, no fantasma, nisso que ainda não é pensamento, nisso que ainda não passou pela fixação do fantasma na memória, que os poetas de amor situam a glosa à psicologia averroísta: “a copulatio, a cópula dos fantasmas com o intelecto possível é uma experiência amorosa, e o amor, antes de qualquer outra coisa, é amor de uma imago, de um objeto de algum modo irreal, exposto, como tal, ao risco da angústia”. A essa angústia, lemos na nota do tradutor Renato Ambrosio, “os poetas estilonovistas denominam ‘dottanza’, que pode ser traduzida por ‘temor, dúvida, hesitação’”.
Assim, o intelecto ou o pensamento se forma, antes de tudo, pela “cópula dos fantasmas”, pelo “amor de uma imago”, pela imaginação, haja vista a palavra “cogitação”, sobre a qual, em nota de Agamben, lemos: “Convém esclarecer que cogitatio, na linguagem medieval, sempre se refere à fantasia e ao seu discurso fantasmático; só com o ocaso da concepção grega e medieval do intelecto soberano, cogitatio começa a designar a atividade intelectual”. Longe de estabelecer uma dicotomia entre fantasma e pensamento – e variações propagadas pela metafísica ocidental, como emoção e razão, coração e cérebro –, essa concepção mostra, ao contrário, que a imago, a imaginação, o fantasma, constitui o pensamento, que o pensamento é uma “experiência amorosa” formado pela “cópula dos fantasmas”, e que a “cogitação” – que posteriormente será designada como pensamento ou intelecto – é um “discurso fantasmático”, isto é, amoroso, erótico.
Colocando Descartes sob o efeito de Eros, praia a pino cogita, imagina, pensa, duvida, nesse exercício erótico em que o pensamento, que vem pela imagem, pela imaginação, pelo fantasma, se faz como uma “experiência amorosa”.
Uma árvore diz sim.
Em “dois” lemos “a perda do sim”: “ver dois caminhando” sempre tem de ser uma ilusão, um “agora, não”, um ensaio de separação: pas de deux. Nesse passo, escutamos outro poema, chamado “romance”: sobre duas mãos, o que resta? O amor longe das palmas.
Do ponto de vista do objeto, a mão está sempre a um palmo de distância. Navegando em outras águas, “objet trouvé” faz do objeto abandonado um objeto perdido, objeto causa de viagem. Sempre de passagem, torna-se sujet, tema, objetivo do encontro. Touché.
“ele olhava a mulher como a fruta sobre a mesa”. Não se faz de uma mulher uma natureza morta, um objeto de estudo das formas. Ela incentiva a viagem, a paisagem, a passagem. No olho, toda uma floresta, indomável como “leoninas vozes”. Ele desfaz a mala. A maçã gira: “não adianta tentar/ fechar a mala com gritos.” Antes e depois de Eva, quantas Evas foram representadas como natureza morta do ponto de vista de um homem? Quantas Evas foram caladas, encarceradas, enquadradas, queimadas na fogueira? “joana d’arc andava florestas. nas sessões de tortura/ perguntavam em que língua falavam as vozes. em uma/ língua melhor do que a de vocês, ela respondia.” Eva morde a maçã, ouve vozes, ocupa-se do gozo, dá passagem: “ela não precisa nomear o gosto da maçã”.
“Eva ouve vozes”. Eva ganha voz. Eva entra em cena: no primeiro ato, há um diálogo entre ela e o estrangeiro que confunde Eva com Vênus. Em seguida, não vem o segundo, mas o terceiro ato: deslocado, o último ocupa o espaço-entre. O que viria por último coloca-se como meio, passagem. Entre elas, Vênus e Eva, ao invés de brincarem no jardim, preocupam-se em “fugir das máquinas”. Vênus diz: “não é uma máquina, é um deus”. Estrangeiros, nós, lemos o mal entendido: é uma máquina, é um deus. O depois chega antes: elas antecipam o que virá. No segundo ato, um diálogo entre Eva e a máquina: Eva e Zeus.
Em Também guardamos pedras aqui, de Luiza Romão, há um poema intitulado “zeus”, com apenas dois versos: “então isso de estupro / não é exclusividade dos homens”. Dizem que Zeus fecundou Dânae, mãe de Perseu, sob a forma de uma chuva de ouro.
No começo era uma cultura, depois outra cultura, depois outra cultura – em uma grande fusão patriarcal na fundação da cultura ocidental.
No começo era uma mulher forjada como metonímia de um homem, fundida a ele, expropriada de seu corpo. “Então o homem exclamou:/ Esta, sim, é osso de meus ossos/ e carne da minha carne!/ Ela será chamada ‘mulher’ [îsha],/ porque foi tirada do homem! [îsh]” (Gênesis 2:19-23). Uma voz diz: Vixi! Outra voz repreende: Shhh! Outra voz exclama: Xiii! Certamente, Eva fala uma língua melhor do que a língua patriarcal que funda um corpo patriarcal. No fundamento ocidental dos corpos das mulheres está a expropriação, suplantada pela lógica da fusão como fundamento ocidental do amor cristão: “Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gênesis 2: 24), diz o versículo que vem na sequência da fala de Adão supracitada. Logo, a lógica do amor romântico fusional encontra explicação e espelhamento no mito de origem da cultura ocidental cristã, em que a mulher é forjada do homem e essa expropriação é suplantada pela lógica da fusão: “eles se tornam uma só carne”. Ali onde retira, arranca, expropria, a fusão vem suplantando, perversamente, a terra devastada, e não a reparando. Ainda há de se aprender muito com Eva sobre cultivo.
Eva, no mito bíblico, foi reduzida a uma costela de Adão; Medusa, no mito greco-romano, foi reduzida a uma cabeça decapitada por Perseu; Dânae foi reduzida à mãe do herói Perseu. As três não se aliam pela filiação, mas pelo fio do horror. Dânae gerou Perseu enquanto era prisioneira do pai e invadida por Zeus; Medusa foi morta por Perseu, aquele que foi fruto de um estupro e decapitou uma mulher que foi estuprada por outro deus – chamam-no de O Rei do Mar – e, depois de estuprada, transformada em monstro. As Metamorfoses de Ovídio contaram tudo – pela metade.
Pela boca de Eva saem todas aquelas cuja palavra sempre chega depois. Só-depois é o tempo da elaboração do trauma. Hoje, no tempo do só-depois, finalmente, interdita-se o deus: “esse jardim é meu” – Eva diz para Zeus. Antes era o silêncio, agora não é o verbo: é o “canto da cobra coral” – Eva ouve um começo não ocidental. E diz sim.
“o início do mundo” é sonhar acordado. Na experiência erótica da imaginação, não se vê mais uma imagem, mas uma voz: “nas cartas escrevo os sonhos dos dias. não há noites. na beira da luz vejo uma só voz”. O início do mundo é rasteiro, sibila ao rés do chão, prosaico. Vers la prose, o verso caminha para a prosa em muitos poemas. O verso do verso: “você é outra pessoa e eu”. Escutamos “eu é um outro” do avesso, de trás para a frente – Rimbaud, aquele que já ecoou em outros livros.
Na luz do sonho, “a minha mão não é minha. alcanço da tempestade o que deixa o seu naufrágio em terra firme”. Sonhar é não saber, mas só quem sonha sabe que sonhar ensina a saber separar: o que é meu, o que é seu? Cada sonho tem uma economia, um modo de arrumar a casa, de cuidar dos resíduos que se depositam, de cultivar o jardim. O que fica? O que resta? A poeira: “e o giro de uma só estrela circunda o que deixamos aqui.”
Chegamos ao irredutível: o grão da voz de uma língua láctea, essa língua cheia de poeira. “Uma tempestade sopra do paraíso” – anuncia, profeticamente, Benjamin ou Eva?
Aquela que vê em via láctea – com a poeira nos olhos. Aquela que fala com a boca cheia de grão, quando deserto e mar se espelham no céu: reflexos invertidos, como todos os pares não dicotômicos que comparecem neste livro. Como dia e noite, interior e exterior: jogo de espelhos, reflexos invertidos, um eu que se faz sempre a partir de uma mensagem invertida que chega sempre de um outro. O sonho traz sempre uma outra cena. Katia se ocupa dessa “outra cena”, isso que Freud chamou de inconsciente. Não temos acesso a essa outra cena senão no sonho. O sonho traz sempre uma outra cena e fala sempre um outro idioma: quando “ouvir” vira “trair”, sopra “a última aula de italiano”, em uma língua evânica, materna não porque é a da mãe ou a da pátria, mas porque é a mais íntima enquanto mais êxtima: a língua que chega de uma via láctea.
Chegar ao irredutível é ir ao ato: não há relação sexual. No princípio era o resto. No princípio era o que resta? No princípio era esse tempo desencaixado. No princípio era o resto, não o verbo. No princípio era o tempo verbal desencaixado. No princípio era o desencaixe. No princípio era o que resta como causa de desejo. Eros tem asas, só atua à distância, com a distância. “Longínquo” – ele corrige. Em uma língua estrangeira, porém, há dança na distância: Dis-Tanz, escutamos em alemão.
Talvez em “vínculo” escutemos cultivo. Eis que retornamos ao início: ao pó. Em direção ao jardim, àquele que cultivou a vida até o fim, àquele que falava grego com nossa imaginação, àquele que falava a lírica língua cheia de maresia. Cultivar o jardim é trabalho – de cuidado, de amor, de luto, de velamento. As plantas regam as letras e olham as nuvens que se precipitam sobre nós. Alguém sonha acordado para poder dormir em paz. Em uma língua evânica, a via láctea chama: de malas prontas para a despedida, regamos as palavras do cultivador da rua campista. No jardim habitam artistas e poetas, aqueles com quem as plantas, as pedras, as árvores, as serpentes e as maçãs falam – e eles escutam.
Depois disso, o princípio é o só-depois, o tempo daquela que nunca nomeou pela primeira vez: quando se aprende a falar, léxicos, dicionários, blablabá. Tudo termina em uma língua estrangeira, vinda da via láctea, presente dos deuses, envio é extravio, poeira, cisco, pequeno grão, pequeno sonho, pequeno som: soneto. Paraíso perdido – porque nunca achado.
REFERÊNCIAS:
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Tradução de Renato Ambrosio. São Paulo: Hedra, 2012.
ALFERI, Pierre. Vers la prose [Rumo à prosa]. Tradução de Masé Lemos e Paula Glenadel. ALEA. Rio de Janeiro, vol. 15/2, p. 423-427, jul-dez 2013.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: O Anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem [1916]. In: Escritos sobre mito e sobre linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011.
BÍBILIA DE JERUSALÉM. Gênesis. São Paulo: Paulus, 2016.
CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Biblioteca Azul, 2018.
CIXOUS, Hélène; DERRIDA, Jacques. Véus... à vela. Tradução de Fernanda Bernardo. Coimbra: Quarteto Editora, 2001.
CIXOUS, Hélène. “Extrema fidelidade”. In: LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
CIXOUS, Hélène. A hora de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Nós, 2022.
DERRIDA, Jacques. “Che cos’è la poesia?”. Tradução de Tatiana Rios e Marcos Siscar. Inimigo Rumor, n. 10, maio 2001.
DERRIDA, Jacques. Esporas: os estilos de Nietzsche. Tradução de Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: NAU, 2013.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “A questão do Eros na obra de Benjamin”. Artefilosofia – Revista do Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte da UFOP, Ouro Preto, n. 4, p. 39-44, jan. 2008.
HESÍODO. Teogonia. Tradução de Henry Bugalho. Curitiba: Kotter Editorial, 2020.
LACAN, Jacques. Seminário 20: Encore. Tradução de Analucia Teixeira Ribeiro. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010.
LACAN, Jacques. Seminário 8: A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.
ROMÃO, Luiza. Também guardamos pedras aqui. São Paulo: Nós, 2021.