Eus e mais uns (2024)
Performance no espaço MESA. a dança interrompe a leitura do texto a esfera eu:

1
há algo de irrefutável na solidez de uma esfera

2
figura da rotação de um círculo em um só eixo
o princípio circular da geometria

3
para rené descartes a substância pensante corresponde a esfera eu

4
o cogito, do latim, eu penso, é um círculo

5
1637 o discurso do método rené descartes: 
notei que, enquanto tentava pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, era algo. observando que essa verdade – penso, logo existo - continha em si tamanha certeza e firmeza que resistia incólume às mais extravagantes suposições, julguei que poderia aceitá-la, sem escrúpulos, como o primeiro princípio da filosofia que procurava
 
6
1807 fenomenologia do espírito hegel  
eu que é nós, nós que é eu
o ser em si e para si é primeiro para nós ou em si

7
1869 notas sobre a linguagem stéphane mallarmé 
todo método é uma ficção
nós não entendemos descartes

8
13 de maio de 1871
arthur rimbaud aos 16 anos escreve ao seu professor georges izambard 
quero ser poeta, e trabalho para tornar-me vidente: o senhor não compreenderá de modo algum, e eu quase não poderia explicar-lhe. trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos. os sofrimentos são enormes, mas é preciso ser forte, ter nascido poeta, e eu me reconheci poeta. não é absolutamente minha culpa. está errado dizer: eu penso. deveríamos dizer: pensam-me. perdão pelo jogo de palavras.
eu é um outro. azar da madeira que se descobre violino, e danem-se os inconscientes que discutem sobre o que ignoram completamente.

9
[PH10] 
a lógica de descartes é dual e processual. a lógica de rimbaud paradoxal. a lógica eu uma categoria inexistente.

10
eu é o paradoxo
eu é o mesmo o outro
o pronome da indeterminado
a singularidade instável
um conjunto de possíveis
o eu impensável de r[PH11] imbaud   
desdobra-se no exercício livre da liberdade
o eu moderno é relacional. a unidade, o individual, o único, muda em função do outro que o percebe. entre o exterior e o interior gera-se uma subjetividade variável 
o eu titubeia

11  
q[PH12] uando vacchagotta, o andarilho, perguntou-lhe diretamente se existe ou não um eu,  
buda permaneceu em silêncio
buda afirma todos os fenômenos são não eu

11
as palavras eu e mim (i and me) não significam nada misterioso ou extraordinário - elas são no fundo nomes de ênfase; e o pensamento está sempre enfatizando alguma coisa
1902 william james

18
no século xix soren kierkegaard se pergunta o que é o si mesmo, para responder cria mais de 20 heterônimos. o filósofo é um autor de autores, escreve livros inteiros com pseudônimos. 

19
no século xx fernando pessoa cria mais de 100 heterônimos. cada heterônimo responde a mesma pergunta de kierkegaard. pessoa diz que desde de pequeno se cercou de amigos que nunca existiram, embora coloque uma dúvida, a de que talvez quem não exista seja ele mesmo. pessoa afirma: eu sou uma antologia.

19
eu é uma coincidência

20
em 1911  em seu dicionário do diabo ambrose bierce define
eu primeira pessoa do alfabeto, primeira palavra da língua, primeiro pensamento que acorre ao espírito, primeiro objeto de afeto, na gramática da língua portuguesa é o pronome da primeira pessoa do singular. o seu plural é considerado nós, mas como poderia existir mais do que um eu mesmo.

21
virgínia wolf escreve um teto todo seu em 1928
eu é apenas um termo conveniente para alguém que não possui um ser real

22
eu. um sujeito. um cógito. um individuo. um index linguístico. um vazio. uma variação. um pronome sem gênero. a dúvida de um pronome.

23
marcel duchamp diz 
o artista não sabe o que faz
eu atribuo mais importância ao espectador do que ao artista 
a frase se aproxima de rimbaud, eles me pensam 

24
o verso de anne sexton they think i am me - acrescenta à indiferença e humor   
duchampiano a leveza e a ironia, como se dissesse - me pensam, logo, eus existem. um modo de articular o discurso indireto livre em primeira pessoa, como a quarta pessoa de lawrence ferlinghetti em seu poema to the oracle at delphi
e nos fala na voz do poeta
a voz da quarta pessoa do singular
a voz do futuro inescrutável
a voz das pessoas misturadas...
no poema eu de 1958, sexton é o eu maquínico feminino. o desamparo subjetivo. a boneca sintética que diz – they think i am me. o mesmo sentido das futuras bonecas de cindy sherman, a artista das múltiplas imagens de si aponta para a despersonalização do eu.
eu é uma coleção de eus

25
a quarta pessoa. um eu contemporâneo, devir na fricção com o pronome nós ou o social, o eu contemporâneo é cada vez mais uma coincidência entre o eu e o nós.

26
eu é um pronome sem gênero. eu no romance de luigi pirandello é um, nenhum e cem mil  o personagem estranha progressivamente como ele se vê e como é visto, até a loucura.
eu é a afirmação de todos os eus.
eu é inclusivo é inconclusivo.

27
em japonês o plural de eu é eus

28
o sujeito é parte da experiência subjetiva.
o sujeito se relaciona com a subjetividade como processo de consciência de um mundo.
a identidade só existe quando a subjetividade está reduzida ao sujeito.
a experiência do mundo em mim.
cada eu coleciona outros eus.

29
o desejo é o eu múltiplo, aberto e livre. 
o eu devir ela, ele, eles e nós. o eu constituído no plural.
o desejo é o estranho familiar.
uma órbita de esferas

30
a heteronímia como método discursivo, multiplica esferas, é uma forma de pensamento das relações com a vida que nos tornam muitos.
eu é uma coleção de eus

31
roland barthes escreve que a ficção não se opõe a realidade, ela apenas diz o que a realidade deve levar em conta.

32
eus eros eu o alfabeto triangular
anne carson

33
no séc vii ac safo diz 
eu desejo e muito me abraso

34
sigmund freud em 1925 escreve a negação
o mau aquilo que é estranho ao ego e que se encontra fora,
é inicialmente igual a ele

35
o ocasional sou eu
Louis Aragon

35
eu prefixo grego significa bom
eu em latim significa ego

36
lou reed diz sou anônimo e esqueci de mim mesmo

37
gertrude stein
i am i because my little dog knows me, but perhaps he does not and if he did i would not be i. oh no oh no.

38
eu mesmo sou o inferno
robert lowell

39
quem era aquela que se dizia eu?
verônica stigger em 2023, krakatoa

42
eu sou uma sílaba 

40
clarice lispector escreve em paixão segundo gh
eu fragmento hieroglífico de um império morto ou vivo.
minha pergunta, se havia, não era: que sou, mas entre quais eu sou

41
um verso no mapa de murilo mendes:
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.


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