INÚTIL PAISAGEM
Guy Brett
Pode não ter sido anunciado como política oficial ou levado a efeito de maneira organizada, mas a poucos residentes do Rio de Janeiro pode ter passado despercebido o aumento de construções gradeadas na cidade. Incontáveis prédios, que antes eram abertos para as ruas, agora quase desaparecem atrás de barras de ferro. Parece ser um incessante processo movido pelo medo do crime e da violência das favelas. Como resultado, porém, algo muito característico e precioso está sendo sacrificado: os pequenos jardins que, com suas infinitas variações, se alongavam pelas ruas, formando irregulares zonas orgânicas; pequenos lembretes do verde.
Apesar de sua desesperada desigualdade social, o Rio sempre evocou uma imagem de fluidez, elasticidade, abertura, que pode ser sentida em uma escala elementar: o abraço sinuoso e curvilíneo do oceano, do céu, da terra e das montanhas; na escala humana da linguagem corporal, facilitada pelo clima; e em um sentimento de que o espaço público é de alguma maneira interminável. A proposta de alguns anos atrás de gradear parte das praias e reservá-la a pessoas que pudessem pagar provocou revolta. Isso ameaçou um princípio democrático que era, no mínimo, autêntico: o de que os pobres po diam se misturar com os ricos na praia.
Inútil paisagem (o título é tomado a uma canção de Tom Jobim) é o mais recente trabalho de uma série de instalações cinematográficas feitas por Katia Maciel que tratam da projeção de imagens e sons como uma experiência espacial, imersiva e, muitas vezes, reativa à interação do espectador. Inútil paisagem usa longos travellings de panoramas urbanos, como em um de seus trabalhos anteriores, Ciclovia, sugerindo um processo de trânsito infinito (implícito na sua noção de transcinema). Trânsito de diferentes velocidades relativas às características fixas e finitas da cena. Trânsito do espectador no espaço. Isso inevitavelmente levanta a questão de quão próximos ou distantes estamos de uma realidade que está sendo mediada, e quanto se pode estar dentro e fora dessa realidade.
O “infinito” de Inútil paisagem contém uma poderosa contradição. A câmera desliza pelas propriedades situadas na avenida Vieira Souto, em Ipanema, de frente para o mar, grade após grade que acabam formando uma única barreira. Em seguida, o filme subitamente inverte o movimento, vai para trás, e pela magia da manipulação digital todas as grades desaparecem. A cidade respira novamente. Como um truque de mágica, é perfeitamente crível, apesar de sabermos que se trata apenas de uma ilusão.
Mas as grades não são elas próprias erguidas por uma noção ilusória de segurança? Inútil porque, nesse processo, o que supostamente era para estar protegido está sendo obliterado. Aqui a metáfora de Katia Maciel se torna universal e altamente pertinente no que diz respeito ao momento que vivemos atualmente na Europa. Enquanto escrevo, na esteira dos bombardeios terroristas em Londres, o Coliseu romano está sendo fechado ao público, talvez pela primeira vez na história, e na Grã-Bretanha uma consulta pública revelou que 73% da população trocariam alguns de seus direitos civis de liberdade por um sentimento de maior segurança.
Contudo, a par de sua atemporalidade, o trabalho de Katia Maciel vincula-se também a um tema ou ideia persistente na arte brasileira: a noção de barreiras e divisões como sendo permeáveis. O Divisor, de Lygia Pape, nos anos 1960 — um grande lençol de algodão, com buracos equidistantes para as cabeças passarem ―, explorava o paradoxo do junto e separado como uma experiência sensual e social. Preocupações similares teve Cildo Meireles em Através (1983-89), uma enorme instalação penetrável feita de diferentes tipos de barreira que se podem encontrar dentro e fora da cidade. E há também Antonio Manuel com Ocupações/Descobrimentos (2002) — um ambiente participativo em que pessoas atravessavam uma sucessão de buracos, feitos pelo próprio artista com um martelo em grandes paredes de tijolos. Trabalhando com a imagem eletrônica, Katia Maciel soma as perplexidades do virtual e da ilusão a esta problemática.
O Rio de Janeiro, uma cidade dividida social e economicamente de maneira tão drástica quanto a cidade de Londres no século XIX, nunca conseguiu honrar por completo a surpreendente beleza de sua paisagem, e estes dois opostos, liberdade e aprisionamento, ainda continuam lutando um contra o outro em vários níveis.
Guy Brett é crítico de arte e curador.
Guy Brett
Pode não ter sido anunciado como política oficial ou levado a efeito de maneira organizada, mas a poucos residentes do Rio de Janeiro pode ter passado despercebido o aumento de construções gradeadas na cidade. Incontáveis prédios, que antes eram abertos para as ruas, agora quase desaparecem atrás de barras de ferro. Parece ser um incessante processo movido pelo medo do crime e da violência das favelas. Como resultado, porém, algo muito característico e precioso está sendo sacrificado: os pequenos jardins que, com suas infinitas variações, se alongavam pelas ruas, formando irregulares zonas orgânicas; pequenos lembretes do verde.
Apesar de sua desesperada desigualdade social, o Rio sempre evocou uma imagem de fluidez, elasticidade, abertura, que pode ser sentida em uma escala elementar: o abraço sinuoso e curvilíneo do oceano, do céu, da terra e das montanhas; na escala humana da linguagem corporal, facilitada pelo clima; e em um sentimento de que o espaço público é de alguma maneira interminável. A proposta de alguns anos atrás de gradear parte das praias e reservá-la a pessoas que pudessem pagar provocou revolta. Isso ameaçou um princípio democrático que era, no mínimo, autêntico: o de que os pobres po diam se misturar com os ricos na praia.
Inútil paisagem (o título é tomado a uma canção de Tom Jobim) é o mais recente trabalho de uma série de instalações cinematográficas feitas por Katia Maciel que tratam da projeção de imagens e sons como uma experiência espacial, imersiva e, muitas vezes, reativa à interação do espectador. Inútil paisagem usa longos travellings de panoramas urbanos, como em um de seus trabalhos anteriores, Ciclovia, sugerindo um processo de trânsito infinito (implícito na sua noção de transcinema). Trânsito de diferentes velocidades relativas às características fixas e finitas da cena. Trânsito do espectador no espaço. Isso inevitavelmente levanta a questão de quão próximos ou distantes estamos de uma realidade que está sendo mediada, e quanto se pode estar dentro e fora dessa realidade.
O “infinito” de Inútil paisagem contém uma poderosa contradição. A câmera desliza pelas propriedades situadas na avenida Vieira Souto, em Ipanema, de frente para o mar, grade após grade que acabam formando uma única barreira. Em seguida, o filme subitamente inverte o movimento, vai para trás, e pela magia da manipulação digital todas as grades desaparecem. A cidade respira novamente. Como um truque de mágica, é perfeitamente crível, apesar de sabermos que se trata apenas de uma ilusão.
Mas as grades não são elas próprias erguidas por uma noção ilusória de segurança? Inútil porque, nesse processo, o que supostamente era para estar protegido está sendo obliterado. Aqui a metáfora de Katia Maciel se torna universal e altamente pertinente no que diz respeito ao momento que vivemos atualmente na Europa. Enquanto escrevo, na esteira dos bombardeios terroristas em Londres, o Coliseu romano está sendo fechado ao público, talvez pela primeira vez na história, e na Grã-Bretanha uma consulta pública revelou que 73% da população trocariam alguns de seus direitos civis de liberdade por um sentimento de maior segurança.
Contudo, a par de sua atemporalidade, o trabalho de Katia Maciel vincula-se também a um tema ou ideia persistente na arte brasileira: a noção de barreiras e divisões como sendo permeáveis. O Divisor, de Lygia Pape, nos anos 1960 — um grande lençol de algodão, com buracos equidistantes para as cabeças passarem ―, explorava o paradoxo do junto e separado como uma experiência sensual e social. Preocupações similares teve Cildo Meireles em Através (1983-89), uma enorme instalação penetrável feita de diferentes tipos de barreira que se podem encontrar dentro e fora da cidade. E há também Antonio Manuel com Ocupações/Descobrimentos (2002) — um ambiente participativo em que pessoas atravessavam uma sucessão de buracos, feitos pelo próprio artista com um martelo em grandes paredes de tijolos. Trabalhando com a imagem eletrônica, Katia Maciel soma as perplexidades do virtual e da ilusão a esta problemática.
O Rio de Janeiro, uma cidade dividida social e economicamente de maneira tão drástica quanto a cidade de Londres no século XIX, nunca conseguiu honrar por completo a surpreendente beleza de sua paisagem, e estes dois opostos, liberdade e aprisionamento, ainda continuam lutando um contra o outro em vários níveis.
Guy Brett é crítico de arte e curador.
USELESS LANDSCAPE
Guy Brett
Guy Brett
It may not have been announced as official policy, or carried out in a concerted fashion, but few who live in Rio de Janeiro can have been unaware of the upsurge of fence construction in the city. Countless buildings that before were open to the street have semi-disappeared behind steel railings. It looks like a relentless process driven by fear of crime and of the violence of the favelas. But as a result something very characteristic and very precious is being sacrificed: the small gardens that in infinite variation reach out from the buildings into the street, and form irregular, organic zones, tiny reminders of the forest.
Despite its desperate social inequalities, Rio de Janeiro has always evoked an image of fluidity, elasticity and openness. This can be felt on an elemental scale: the sinuous, curving embrace of ocean, sky, land and mountains; on the human scale of body language, eased by the climate; and as an inner feeling that public space is in some way endless. A proposal a few years back to fence off parts of the beaches, making them exclusive for a paying public, provoked outrage. It threatened one democratic principle that was at least authentic: that the poorest could mingle with the richest on the beaches.
Inútil paisagem (Useless Landscape — the title is taken from a Tom Jobim song) is the latest in a series of cinematic installations by Katia Maciel which treat the projection of images and sounds as a spatial experience, immersive, and often responsive to the viewer’s interaction. Inútil paisagem uses long tracking shots in the urban landscape, as an earlier work, Ciclovia, did, suggesting a sort of unending process of transit (implicit in Katia Maciel’s general notion of transcinema). Transit of various velocities relative to the fixed and finite features of the scene. Transit of the viewer in the space. This inevitably raises the question of how near or distant one is to the reality that is being mediated and how outside and inside reality one may be.
The "endlessness" of Inútil paisagem contains a powerful contradiction. The camera tracks along the properties that line the seafront avenida Vieira Souto in Ipanema and other streets, past fence after fence which merge into a single barrier. Then the film suddenly reverses, backtracks, and by the magic of digital manipulation all the fences are removed. The city breathes again. Like a conjurer’s trick it is perfectly believable though we know it is an illusion.
But then, are not the fences themselves erected from an illusory notion of security? "Useless" because in the process, what is supposed to be protected is being obliterated. Here Katia Maciel’s metaphor becomes universal — and highly pertinent to the moment we are living in Europe. Even as I write, in the wake of the London terrorist bombings, the Coliseum in Rome is being fenced off from the public, presumably for the first time in its history, and in Britain an opinion poll declares that 73% of the population would trade some of their civil liberties for a greater sense of security.
Along with its timeliness, however, Katia Maciel’s work connects with a persistent theme, or idea, in Brazilian art: the notion of barriers and divisions as permeable. Lygia Pape’s Divisor in the 1960s — a vast cotton sheet pierced with equidistant holes for people’s heads to come through — explored the paradox of "together" and "divided" as a sensuous and social experience. Similar preoccupations mark Cildo Meireles’s Through (1983-89), a huge penetrable installation made up of all different sorts of barriers one finds in cities, inside and out. And then there is Antonio Manuel’s Ocupações/Descobrimentos (2002) — a participatory environment in which people climbed their way through a succession of holes smashed in brick walls by the artist with a hammer. Working on the electronic image, Katia Maciel adds the perplexities of virtuality and illusion to the problematic.
Rio de Janeiro, a city divided socially and economically as drastically as London was in the 19th century, has never been able to completely honour the astonishing beauty of its site, and the two opposites of liberty and bondage continually struggle with one another at many levels.
Guy Brett is an art critic and curator.
Despite its desperate social inequalities, Rio de Janeiro has always evoked an image of fluidity, elasticity and openness. This can be felt on an elemental scale: the sinuous, curving embrace of ocean, sky, land and mountains; on the human scale of body language, eased by the climate; and as an inner feeling that public space is in some way endless. A proposal a few years back to fence off parts of the beaches, making them exclusive for a paying public, provoked outrage. It threatened one democratic principle that was at least authentic: that the poorest could mingle with the richest on the beaches.
Inútil paisagem (Useless Landscape — the title is taken from a Tom Jobim song) is the latest in a series of cinematic installations by Katia Maciel which treat the projection of images and sounds as a spatial experience, immersive, and often responsive to the viewer’s interaction. Inútil paisagem uses long tracking shots in the urban landscape, as an earlier work, Ciclovia, did, suggesting a sort of unending process of transit (implicit in Katia Maciel’s general notion of transcinema). Transit of various velocities relative to the fixed and finite features of the scene. Transit of the viewer in the space. This inevitably raises the question of how near or distant one is to the reality that is being mediated and how outside and inside reality one may be.
The "endlessness" of Inútil paisagem contains a powerful contradiction. The camera tracks along the properties that line the seafront avenida Vieira Souto in Ipanema and other streets, past fence after fence which merge into a single barrier. Then the film suddenly reverses, backtracks, and by the magic of digital manipulation all the fences are removed. The city breathes again. Like a conjurer’s trick it is perfectly believable though we know it is an illusion.
But then, are not the fences themselves erected from an illusory notion of security? "Useless" because in the process, what is supposed to be protected is being obliterated. Here Katia Maciel’s metaphor becomes universal — and highly pertinent to the moment we are living in Europe. Even as I write, in the wake of the London terrorist bombings, the Coliseum in Rome is being fenced off from the public, presumably for the first time in its history, and in Britain an opinion poll declares that 73% of the population would trade some of their civil liberties for a greater sense of security.
Along with its timeliness, however, Katia Maciel’s work connects with a persistent theme, or idea, in Brazilian art: the notion of barriers and divisions as permeable. Lygia Pape’s Divisor in the 1960s — a vast cotton sheet pierced with equidistant holes for people’s heads to come through — explored the paradox of "together" and "divided" as a sensuous and social experience. Similar preoccupations mark Cildo Meireles’s Through (1983-89), a huge penetrable installation made up of all different sorts of barriers one finds in cities, inside and out. And then there is Antonio Manuel’s Ocupações/Descobrimentos (2002) — a participatory environment in which people climbed their way through a succession of holes smashed in brick walls by the artist with a hammer. Working on the electronic image, Katia Maciel adds the perplexities of virtuality and illusion to the problematic.
Rio de Janeiro, a city divided socially and economically as drastically as London was in the 19th century, has never been able to completely honour the astonishing beauty of its site, and the two opposites of liberty and bondage continually struggle with one another at many levels.
Guy Brett is an art critic and curator.