KM: DESVARIOS  
Ricardo Basbaum

Intelectuais e artistas sempre se encontraram na mútua convergência da construção do momento público que é a obra de arte e seus rituais de apresentação: celebra-se a singularidade do instante em que a produção de pensamento — sensação e conceito — é oferta generosa, inflexão e dobra do tempo. O trabalho de arte traz a promessa do presente radical, sempre e sempre; essa é uma das possibilidades de seu exercício. Katia Maciel é uma pesquisadora que, nas últimas décadas, vem construindo modalidades de confronto com o mundo, no manejo dos dispositivos de produção da imagem em movimento — cinema, vídeo, videoinstalação, controle digital da imagem etc. O terreno em que se move é aquele do transcinema, 

 termo que ajudou a criar e significar, no investimento de uma inteligência própria do dispositivo técnico de intervenção artística — entrecruzamento de narrativas, efeitos, sequenciamentos, ações corporais e vozes: há já um corpo de obra e conjunto de experimentos que trazem um fio sinuoso de espessura própria, onde se materializam as inquietações e problematizações de uma poética. Reinventar-se como artista impôs-se como desejo, tarefa produtiva e movimentação pragmática no corpo a corpo com a prática de produção de pensamento, nas pontes que ligam a universidade à sociedade — e agora, também, nas redes de um circuito de arte, com suas nuances e reverberações.

É fascinante o processo pelo qual os artistas se inventam em público, buscando construir lugares de emissão de fala frente ao conjunto de imagens coletivas da sociedade, alinhando-se às práticas existentes, mas também ali instalando caprichos e descontinuidades. Talvez seja por meio da série de vídeos Desvarios (2008-2009) que Katia Maciel se deixe atravessar mais literal e diretamente pelos devires da produção da obra de arte, fazendo-se presente nas ações através do corpo ou da voz e, ao mesmo tempo, acionando alguns dos mecanismos recursivos tão caros à sua prática: fazer recomeçar novamente as ações construídas, sem deixar que se concluam em uma operação satisfatória de finalização dos processos. O canto infantil que embala a câmera em seu passeio pelo canteiro de flores (A linda rosa juvenil) é confrontado com o crescimento descontrolado e autoportante das formações vegetais (Ver de); ou o gesto de preenchimento líquido de um simples copo não vem a termo como se espera (Meio cheio, meio vazio), ao mesmo tempo em que a artista se retrata em gestual excessivo de colocar colares em seu próprio corpo, sem qualquer medida (Colar): cada qual dessas ações videográficas — ainda que diversas em suas manobras de construção direta ou indireta da imagem, lançando mão de manipulações, construções e efeitos — aponta para o esforço da produção de um desvio qualquer, pequenos delírios, desacertos ou desatinos (termos que ajudam a definir desvario, segundo dicionários). O efeito final é de suspensão, no sentido de arrancar as coisas e ações registradas de sua amarração cotidiana, transformando-as em casos particulares de repetição e recorrência, ligeiros redemoinhos — em cada caso, ocorre insistência, mas acontece também aquele que é um dos principais derivados da construção recursiva, a devolução e a restituição não do mesmo, mas do outro, a produção de diferença. 

Neste grupo de vídeos, Katia Maciel é atraída pelas aproximações e induções da repetição, trabalhando quase em direção ao uso de mecanismos de produção de atenção próximos à hipnose — no sentido de envolver o espectador no loop do pequeno gesto, repetição mecânica da percepção, torpor. É em O livro aberto que a artista, porém, indica outra direção — embora ainda dentro da mesma estratégia de produção de sentido: ler e escrever; escrever e ler; sempre a recomeçar. Entretanto, não porque o fim da narrativa é seu contínuo recomeço (como no monumento literário
Finnegans Wake, por exemplo), mas porque o exercício contínuo da leitura e da escrita somente avança aos saltos — o interior do livro é sua face mais externa, e quanto mais nos aprofundamos mais somos lançados para fora, para a face pública do objeto, sua camada de comunicação externa. Se esta é também uma obra aberta (franqueada ao espectador), é sobretudo indicativa de um modo de constituição da prática artística que se move aos saltos e arranca sua interface comunicativa mais exteriorizante do interior narrativo repetitivo e desviante. Pragmática insistente, recursiva e circular — desvario como invenção e intervenção. Como indica a artista, em uma frase que lhe é cara, “repetir é esquecer o esquecimento”. E avançar. 


Ricardo Basbaum é artista, pesquisador e professor titular-livre do Departamento de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF).

KM: DESVARIOS [DERANGEMENTS]  
Ricardo Basbaum
Intellectuals and artists have always happened upon one another in the mutual convergence of the construction of the public moment that ultimately constitutes the art work and its presentation rituals: we celebrate the singularity of the instant in which the thought production — sensation and concept — is a generous offer, the inflection and folding of time. The art work brings with it the 
 promise of an always and ever radical present; this is one of the possibilities of its practice. Katia Maciel is a researcher who, in the last decades, has been devising ways of confronting the world through the management of moving image’s production devices — cinema, video, video-installation, digital control of the image, etc. Her field of activities is that of transcinema, a term she helped create and signify through the investiture of an intelligence that is inherent to the artistic intervention’s technical device — an intercrossing of narratives, effects, sequencing, corporal actions, and voices: a body of work and set of experiments connected by a sinuous thread of unique thickness already provide a platform where the apprehensions and problematizations of a poetics can be materialized. Reinventing oneself as an artist imposed itself as desire, productive task and pragmatic movement in wrestling with the practice of thought production, in the bridges that connect university and society — and now also in the networks of an art circuit, with its nuances and reverberations. 

The process through which artists invent themselves in public is fascinating, seeking to build places of speech emission in face of the set of collective images within society, aligning itself to the existing practices, but also installing whims and discontinuities therein. Maybe it is through the video series Desvarios [Derangements, 2008-2009] that Katia Maciel lets herself be pierced more literally and directly by the “becomings” of the art work production, making herself present in the actions through the body or voice, while at the same time activating some of the recursive mechanisms that are so dear to her practice: making the construction actions begin anew without letting them be concluded in a satisfactory operation of process finalization. The childish song that rocks the camera during its stroll through the flower garden (A linda rosa juvenil — The beautiful youth rose) is confronted by the uncontrolled and selfbearing growth of the vegetal formations (Ver de1); or the gesture of filling up a simple glass with liquid that does not turn out as expected (Meio cheio, meio vazio — Half full, half empty), while the artist at the same time portrays herself in an excessive and unrestrained gesturing of putting on necklaces (Colar — Necklace): each one of these videographic actions — even if diverse in their direct or indirect image construction maneuvers, making use of manipulations, constructions, and effects — point to the effort involved in the production of some dysfunction, such as slight frenzies, nonsense, or folly (terms that help define derangement, according to dictionaries). The final effect is one of suspension, in the sense of tearing recorded things and actions from their day to day entanglement, transforming them into particular cases of repetition and recurrence, brief whirlwinds — in each case, there is insistence, but there is also that which is one of the main results of the recursive construction, the devolution and restitution not of the same, but of the other, the production of difference.

In this set of videos, Katia Maciel is attracted by the assessments and inductions of repetition, working almost toward the use of attention production mechanisms akin to hypnosis — in the sense of involving the spectator in the loop that comprises the small gesture, the mechanical repetition of perception, the torpor. In
O livro aberto [The open book], however, the artist points us in a different direction — albeit using the same strategy of sense production: reading and writing; writing and reading; ever starting over. However, not because the end of the narrative is its continuous recommencement (as in the literary monument Finnegans Wake, for instance), but because the continuous practice of reading and writing can only enhance the leaps — the interior of the book is its most external face, and the deeper we get, the more we are directed outwards, towards the image’s public facet, its layer of external communication. If this is also an open work (open to the public), it is, above all, indicative of a constitution means of the artistic practice that moves in leaps, extracting its more exteriorizing communicative interface from the repetitive and dysfunctional narrative interior. An insistent, recursive, and circular pragmatics — derangement as invention and intervention. As the artist indicates in a sentence that is dear to her, “Repeating is forgetting forgetfulness.” And advancing.

Ricardo Basbaum is an artist, researcher and head professor of the Art Department at the Universidade Federal Fluminense (UFF).