O RAPTO
Paula Alzugaray
Nas vistas e nos panoramas da iconografia brasileira do século XIX, o esplendor da natureza retratada poderia dispensar a presença humana — que ora aparece num canto do quadro, tímida, minimizada, quase anulada pela paisagem, ora cede à tentação de domesticá-la, assumindo uma postura desafiadora.
Na Floresta virgem, litografia de Araújo Porto-Alegre, de 1853, dois homens entram na mata fechada. Um vai armado, o outro carrega uma pasta ou caderno de notas debaixo do braço. Ambos são, provavelmente, a mesma pessoa: o intelectual oitocentista que penetra na paisagem nativa com vontade dominadora e certa avidez por torná-la exótica ou pitoresca.
Katia Maciel tem o mesmo ímpeto de devassar a espessura da floresta. Mas, diferentemente de seus antecessores expedicionários e artistas viajantes, não contempla nem ataca suas maravilhas. É capturada pela paisagem.
A figura que pende, laçada a um galho de árvore, na clareira de uma floresta — Vulto — é o eixo central de Suspense, o projeto de cinema expandido que a artista começou em 2013. Esse Vulto confere um eixo rítmico ao entrecortado discurso cinematográfico em processo de Katia Maciel.
Na primeira exposição do projeto apresentava-se o enredo: mulher perdida no paraíso (reduto mais longínquo da floresta?) envia fotografias como pistas para a sua impossível localização. Agora, no segundo capítulo do projeto, já não há fotografias, portanto, as pistas estão rarefeitas. A presença humana, imperativa na primeira parte, praticamente desaparece e a natureza se faz onipresente. Dentro das Cavalariças, cada uma das quatro obras expostas espelha a realidade verde circundante.
Expedição, rapto ou extravio? A dúvida sobre o quê, exatamente, teria atraído ou levado essa mulher de identidade dissimulada ao coração da floresta permanece. Mas seu destino e sua condição — atada a uma árvore, em movimento pendular — nos colocam no rastro dos habitantes ancestrais dessas matas ao fundo da Lagoa. Onde hoje está o Parque Lage, na pré- -história do Rio de Janeiro, viveram os temíveis índios carajás, que tinham aversão ao olhar humano e poder de se transformar em onças. O mito conta que não havia selva mais escura que aquela onde viviam os carajás. Como medusas, devoravam quem quer que os encarasse. Era fatal enfrentá-los de olhos abertos.1
Antes de embarcar em expedição amazônica, a fim de realizar seu lendário filme, unindo pesquisa etnográfica e drama ficcional sobre
a menina branca sequestrada e endeusada por índios, Flávio de Carvalho manteve contato com os índios carajás do Brasil Central — em 1952, quando integrou as filmagens de O grande desconhecido, de Mário Civelli. Mas nada indica que sejam os mesmos carajás implicados no rapto de Katia Maciel (escolherei tomar o caso como rapto, aprofundando a relação entre Suspense e A deusa branca, longa-metragem não finalizado de Flávio de Carvalho, e dada toda a carga mítica e simbólica implícita nesse tipo de episódio).
Em correspondência secreta com o pensamento mágico dos antigos povos das matas do Rio, Suspense projeta-se nas paredes das Cavalariças como um mapa inviável do paraíso perdido. As pistas, agora latentes, parecem querer inscrever-se no travelling infinito da Trilha, vídeo que ocupa a integridade de uma das paredes do edifício central das Cavalariças.
Além da ilusão de entrever sinais em cascas de árvores, há também as armadilhas. A mais perigosa talvez seja o Verso, dispositivo tecnológico antropofágico, que devora o visitante tão logo este penetra o edifício, fazendo dele o protagonista do ritual que se desenha ali.
Na sala contígua, Uma árvore (que respira como um animal, ou que parece ter devorado um, a fim de assimilar sua capacidade de expandir e contrair os pulmões), trabalho de 2009, incorporado a Suspense, não deixa dúvidas sobre o partido da artista em construir seu discurso a partir dos princípios de ordenação do mundo que apreendeu da experiência da mata.
Paula Alzugaray é crítica de arte, curadora e editora da revista Select.
Paula Alzugaray
Nas vistas e nos panoramas da iconografia brasileira do século XIX, o esplendor da natureza retratada poderia dispensar a presença humana — que ora aparece num canto do quadro, tímida, minimizada, quase anulada pela paisagem, ora cede à tentação de domesticá-la, assumindo uma postura desafiadora.
Na Floresta virgem, litografia de Araújo Porto-Alegre, de 1853, dois homens entram na mata fechada. Um vai armado, o outro carrega uma pasta ou caderno de notas debaixo do braço. Ambos são, provavelmente, a mesma pessoa: o intelectual oitocentista que penetra na paisagem nativa com vontade dominadora e certa avidez por torná-la exótica ou pitoresca.
Katia Maciel tem o mesmo ímpeto de devassar a espessura da floresta. Mas, diferentemente de seus antecessores expedicionários e artistas viajantes, não contempla nem ataca suas maravilhas. É capturada pela paisagem.
A figura que pende, laçada a um galho de árvore, na clareira de uma floresta — Vulto — é o eixo central de Suspense, o projeto de cinema expandido que a artista começou em 2013. Esse Vulto confere um eixo rítmico ao entrecortado discurso cinematográfico em processo de Katia Maciel.
Na primeira exposição do projeto apresentava-se o enredo: mulher perdida no paraíso (reduto mais longínquo da floresta?) envia fotografias como pistas para a sua impossível localização. Agora, no segundo capítulo do projeto, já não há fotografias, portanto, as pistas estão rarefeitas. A presença humana, imperativa na primeira parte, praticamente desaparece e a natureza se faz onipresente. Dentro das Cavalariças, cada uma das quatro obras expostas espelha a realidade verde circundante.
Expedição, rapto ou extravio? A dúvida sobre o quê, exatamente, teria atraído ou levado essa mulher de identidade dissimulada ao coração da floresta permanece. Mas seu destino e sua condição — atada a uma árvore, em movimento pendular — nos colocam no rastro dos habitantes ancestrais dessas matas ao fundo da Lagoa. Onde hoje está o Parque Lage, na pré- -história do Rio de Janeiro, viveram os temíveis índios carajás, que tinham aversão ao olhar humano e poder de se transformar em onças. O mito conta que não havia selva mais escura que aquela onde viviam os carajás. Como medusas, devoravam quem quer que os encarasse. Era fatal enfrentá-los de olhos abertos.1
Antes de embarcar em expedição amazônica, a fim de realizar seu lendário filme, unindo pesquisa etnográfica e drama ficcional sobre
a menina branca sequestrada e endeusada por índios, Flávio de Carvalho manteve contato com os índios carajás do Brasil Central — em 1952, quando integrou as filmagens de O grande desconhecido, de Mário Civelli. Mas nada indica que sejam os mesmos carajás implicados no rapto de Katia Maciel (escolherei tomar o caso como rapto, aprofundando a relação entre Suspense e A deusa branca, longa-metragem não finalizado de Flávio de Carvalho, e dada toda a carga mítica e simbólica implícita nesse tipo de episódio).
Em correspondência secreta com o pensamento mágico dos antigos povos das matas do Rio, Suspense projeta-se nas paredes das Cavalariças como um mapa inviável do paraíso perdido. As pistas, agora latentes, parecem querer inscrever-se no travelling infinito da Trilha, vídeo que ocupa a integridade de uma das paredes do edifício central das Cavalariças.
Além da ilusão de entrever sinais em cascas de árvores, há também as armadilhas. A mais perigosa talvez seja o Verso, dispositivo tecnológico antropofágico, que devora o visitante tão logo este penetra o edifício, fazendo dele o protagonista do ritual que se desenha ali.
Na sala contígua, Uma árvore (que respira como um animal, ou que parece ter devorado um, a fim de assimilar sua capacidade de expandir e contrair os pulmões), trabalho de 2009, incorporado a Suspense, não deixa dúvidas sobre o partido da artista em construir seu discurso a partir dos princípios de ordenação do mundo que apreendeu da experiência da mata.
Paula Alzugaray é crítica de arte, curadora e editora da revista Select.
1 Mussa Alberto. A primeira história do mundo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014, pp. 98-100.
THE KIDNAPPING
Paula Alzugaray
In views and panoramas pertaining to Brazilian 19th century iconography, the natural splendor that is depicted could very well dispense with human presence — which either appears occasionally on the corner of the picture, timid, minimized, almost annulled by the landscape, or gives in to the temptation of domesticating it and assuming a challenging pose.
In Floresta virgem, a lithograph by Araújo Porto-Alegre, dated 1853, two men enter the woods. One is armed; the other carries a briefcase or notebook under his arm. They are both, in all probability, the same person: the 19th century intellectual who pierces through the landscape with a dominating will and a certain avidness for making it exotic or picturesque.
Katia Maciel has the same drive to intrude upon the thickness of the forest. However, unlike her expeditionary ancestors and travelling artists, she neither contemplates nor attacks its wonders. She is seized by the landscape.
The hanging figure, tied to a tree branch in a forest clearing — Vulto — is the main axis of Suspense, the expanded cinema project the artist initiated in 2013. Vulto confers a rhythmic axis to Katia Maciel’s splintered, in-progress filmic discourse.
In the project’s first exhibit, the plot was presented: a woman lost in paradise (the farthest corner of the forest?) sends photographs as clues to her impossible whereabouts. Now, in the project’s second installment, there are no longer any photographs, and so clues appear rarified. Human presence, imperative in the first part, practically disappears as nature looms, omnipotent. Inside the Cavalariças, each piece on display mirrors the green surroundings.
Expedition, kidnapping or loss of one’s way? The doubt as to what exactly could have drawn this unidentified woman to the heart of the forest remains. But her fate and her condition — tied to a tree, swinging pendulumlike — place us on the trail of ancient dwellers of these woods at the back of Lagoa. Where the Lage Park now stands, in Rio de Janeiro’s pre-history, there lived the fearsome Carajá Indians, who were averse to the human gaze and capable of transforming into jaguars. Myth has it that there was no jungle darker than the one inhabited by the carajás. Like Medusas, they devoured whomever dared face them. To challenge them with eyes open always proved fatal.1
Before embarking on an Amazonian expedition for the purpose of shooting his now-legendary film, mixing ethnographic research and fictional drama, on the kidnapped white girl worshipped by Indians as a Goddess, Flávio de Carvalho came into contact with Central Brazil’s Carajá Indians — in 1952, when he took part in Mário Civelli’s production, The Great Unknown. But we have no guaranty that these were the same Carajá Indians implicated in Katia Maciel’s kidnapping (I choose to take the matter as a kidnapping, in an attempt to reinforce this link between Suspense and The White Goddess [A deusa branca], Flávio de Carvalho’s incomplete feature length film, and in light of all the mythic and symbolic weight implied in this kind of episode).
In secret correspondence with the magical thought of the ancient peoples of Rio’s woods, Suspense is projected on the walls of the Cavalariças like an unfeasible map of paradise lost. The clues, now latent, seem to want to inscribe themselves in the infinite travelling shot of Trilha, a video that occupies an entire wall of the Cavalariças’ central building.
Apart from the illusion of finding signs in tree trunks, there are also traps. The most dangerous one is perhaps Verso, an anthropophagic technological device that devours the visitor as soon as he enters the building, turning him into a protagonist of the ritual that is unfolding there.
In the adjoining room, Uma árvore (a tree that breathes like an animal, or that seems to have engulfed one in order to assimilate its capacity to expand and contract lungs), a piece dated 2009 and incorporated into Suspense, leaves no doubts as regards the artist’s stand in constructing her discourse based on principles of world-organization she has apprehended in her forest experience.
Paula Alzugaray is an art critic, curator and editor of Select magazine.
In Floresta virgem, a lithograph by Araújo Porto-Alegre, dated 1853, two men enter the woods. One is armed; the other carries a briefcase or notebook under his arm. They are both, in all probability, the same person: the 19th century intellectual who pierces through the landscape with a dominating will and a certain avidness for making it exotic or picturesque.
Katia Maciel has the same drive to intrude upon the thickness of the forest. However, unlike her expeditionary ancestors and travelling artists, she neither contemplates nor attacks its wonders. She is seized by the landscape.
The hanging figure, tied to a tree branch in a forest clearing — Vulto — is the main axis of Suspense, the expanded cinema project the artist initiated in 2013. Vulto confers a rhythmic axis to Katia Maciel’s splintered, in-progress filmic discourse.
In the project’s first exhibit, the plot was presented: a woman lost in paradise (the farthest corner of the forest?) sends photographs as clues to her impossible whereabouts. Now, in the project’s second installment, there are no longer any photographs, and so clues appear rarified. Human presence, imperative in the first part, practically disappears as nature looms, omnipotent. Inside the Cavalariças, each piece on display mirrors the green surroundings.
Expedition, kidnapping or loss of one’s way? The doubt as to what exactly could have drawn this unidentified woman to the heart of the forest remains. But her fate and her condition — tied to a tree, swinging pendulumlike — place us on the trail of ancient dwellers of these woods at the back of Lagoa. Where the Lage Park now stands, in Rio de Janeiro’s pre-history, there lived the fearsome Carajá Indians, who were averse to the human gaze and capable of transforming into jaguars. Myth has it that there was no jungle darker than the one inhabited by the carajás. Like Medusas, they devoured whomever dared face them. To challenge them with eyes open always proved fatal.1
Before embarking on an Amazonian expedition for the purpose of shooting his now-legendary film, mixing ethnographic research and fictional drama, on the kidnapped white girl worshipped by Indians as a Goddess, Flávio de Carvalho came into contact with Central Brazil’s Carajá Indians — in 1952, when he took part in Mário Civelli’s production, The Great Unknown. But we have no guaranty that these were the same Carajá Indians implicated in Katia Maciel’s kidnapping (I choose to take the matter as a kidnapping, in an attempt to reinforce this link between Suspense and The White Goddess [A deusa branca], Flávio de Carvalho’s incomplete feature length film, and in light of all the mythic and symbolic weight implied in this kind of episode).
In secret correspondence with the magical thought of the ancient peoples of Rio’s woods, Suspense is projected on the walls of the Cavalariças like an unfeasible map of paradise lost. The clues, now latent, seem to want to inscribe themselves in the infinite travelling shot of Trilha, a video that occupies an entire wall of the Cavalariças’ central building.
Apart from the illusion of finding signs in tree trunks, there are also traps. The most dangerous one is perhaps Verso, an anthropophagic technological device that devours the visitor as soon as he enters the building, turning him into a protagonist of the ritual that is unfolding there.
In the adjoining room, Uma árvore (a tree that breathes like an animal, or that seems to have engulfed one in order to assimilate its capacity to expand and contract lungs), a piece dated 2009 and incorporated into Suspense, leaves no doubts as regards the artist’s stand in constructing her discourse based on principles of world-organization she has apprehended in her forest experience.
Paula Alzugaray is an art critic, curator and editor of Select magazine.
1 Mussa Alberto. A primeira história do mundo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014, pp. 98-100.