SINOPSE DE UM SUSPENSE
Paula Alzugaray
Uma carta chegou pelo correio esta manhã. Não, era uma caixa. Pensei ouvir um ruído vindo lá de dentro. Som de trem deslizando em trilhos. Som de grito, ou seria um mosquito? Balancei. Abri. Por uma fresta, vi que dentro tinha AR. Fresco, verde, cheiro de terra desconhecida. E uma corda, que caiu no chão e escapou pela grama, deixando um desenho serpenteante como rastro, desaparecendo sem direção precisa.
Paula Alzugaray
Uma carta chegou pelo correio esta manhã. Não, era uma caixa. Pensei ouvir um ruído vindo lá de dentro. Som de trem deslizando em trilhos. Som de grito, ou seria um mosquito? Balancei. Abri. Por uma fresta, vi que dentro tinha AR. Fresco, verde, cheiro de terra desconhecida. E uma corda, que caiu no chão e escapou pela grama, deixando um desenho serpenteante como rastro, desaparecendo sem direção precisa.
Uma caixa com ar, uma corda e uma carta.
Da caixa — ou teria sido da carta — escaparam palavras: espera, espreita, tocaia, vestígio, cálculo, teoria, perspectiva, abrigo, vulto, vertigem, vertigo. Sem elo evidente de ligação formatando sentido linear, as palavras insinuavam uma sinopse poética de um filme ainda por ser feito. Diziam respeito a uma mulher perdida no paraíso, que enviava fotografias — ou frames — como pistas para sua impossível localização.
Frame 1: Espreita. Em atmosfera sonâmbula, alienada ou alucinada, mulher de identidade dissimulada mergulha em ambiente verde, aparentando perseguir uma ideia de liberdade. Ou está apenas sonhando.
Frame 2: Espera. Um segundo mais tarde — ou antes —, mulher pisa em falso, avançando sobre o nada e deixando sobre o ar rarefeito da selva uma ideia em aberto.
O que a teria atraído para a floresta? Em que medida ela segue a trilha de outros aventureiros e excursionistas que se perderam na mata em busca do eldorado, do paraíso perdido, ou na perseguição romântica de um estado de esquecimento, de um retiro para meditar, escrever poemas, dedicar-se aos prazeres da música e à reinvenção de uma vida ideal?
Em que medida essa mulher de identidade dissimulada refaz a trilha da experiência artístico-antropológica de Flávio de Carvalho, que em 1958 expedicionou ao Amazonas com o projeto de realizar um filme semidocumentário sobre a história de uma Deusa Branca que vivera na selva? Na clareira mais extrema dessa mata virgem, ela reencontraria ainda o herói brasileiro sem nenhum caráter, à deriva.
Ou seria ela membro dissidente do grupo de sete intelectuais que se refugiaram em uma floresta de bambu, originalmente na China do século III a.C., reaparecendo depois na obra de Yang Fudong, em 2006? A vegetação exuberante desse jardim botânico sensorial, com seus paus-ferros, palmeiras-imperiais, cactos, paus-mulatos, ciprestes e mangueirais, torna realmente difícil a localização geográfica e temporal dessa história.
Na terceira parte desse enredo, o que era impressão torna-se movimento. Ainda assim, mínimo. Vulto. O corpo que espreitava com autonomia e aspirava à liberdade agora balança em suspensão atemporal. Presa de armadilha? Corpo que pende. Motivo de meditação. Estamos longe de um desfecho.
A mata é pano de fundo para um enredo incerto. A deriva, a negação da civilização, a fuga, a alienação, a tipologia do artista viajante, enfim, integram a bagagem carregada pela mulher de identidade dissimulada da ficção de Katia Maciel.
Suspense, um projeto de cinema-situação, integra pesquisa de Katia Maciel sobre níveis simultâneos de narrativa. Na individual na Zipper Galeria, a artista elabora mais um capítulo de seu transcinema, atravessando a performance e entrando no terreno do texto poético.
A ação e o desenvolvimento dramático, aqui, se dão de forma espacializada, expandindo-se para além das cenas inscritas em fotografias, vídeos e videoinstalação. O enredo que ocupa o espaço da galeria teve um preâmbulo no ambiente das mídias impressa e digital e no espaço urbano, na forma de cartazes lambe-lambe.
Nos cartazes, a mulher de identidade dissimulada inscreve suas notas de viagem, que funcionam, afinal, como mensagens colocadas dentro da garrafa e atiradas em alto-mar. Essas pistas, que conspiram a favor de sua eventual localização, ganham certo sentido quando alinhadas em parede de galeria. Mas não revelam seu paradeiro. Uma caixa com ar, uma corda, uma carta, duas palavras e caixa de luz. A experiência da vertigem se completa em Verso, instalação-dispositivo que retém o espectador desse filme-situação entre a mata e um espelho. Transformada em imagem, percebo que o tempo dissimulado da ficção é simultâneo ao meu tempo real. Como o sopro de AR é simultâneo ao feixe de LUZ, dentro de caixas. Ou seriam cartas?
Paula Alzugaray é crítica de arte, curadora e editora da revista Select.
Da caixa — ou teria sido da carta — escaparam palavras: espera, espreita, tocaia, vestígio, cálculo, teoria, perspectiva, abrigo, vulto, vertigem, vertigo. Sem elo evidente de ligação formatando sentido linear, as palavras insinuavam uma sinopse poética de um filme ainda por ser feito. Diziam respeito a uma mulher perdida no paraíso, que enviava fotografias — ou frames — como pistas para sua impossível localização.
Frame 1: Espreita. Em atmosfera sonâmbula, alienada ou alucinada, mulher de identidade dissimulada mergulha em ambiente verde, aparentando perseguir uma ideia de liberdade. Ou está apenas sonhando.
Frame 2: Espera. Um segundo mais tarde — ou antes —, mulher pisa em falso, avançando sobre o nada e deixando sobre o ar rarefeito da selva uma ideia em aberto.
O que a teria atraído para a floresta? Em que medida ela segue a trilha de outros aventureiros e excursionistas que se perderam na mata em busca do eldorado, do paraíso perdido, ou na perseguição romântica de um estado de esquecimento, de um retiro para meditar, escrever poemas, dedicar-se aos prazeres da música e à reinvenção de uma vida ideal?
Em que medida essa mulher de identidade dissimulada refaz a trilha da experiência artístico-antropológica de Flávio de Carvalho, que em 1958 expedicionou ao Amazonas com o projeto de realizar um filme semidocumentário sobre a história de uma Deusa Branca que vivera na selva? Na clareira mais extrema dessa mata virgem, ela reencontraria ainda o herói brasileiro sem nenhum caráter, à deriva.
Ou seria ela membro dissidente do grupo de sete intelectuais que se refugiaram em uma floresta de bambu, originalmente na China do século III a.C., reaparecendo depois na obra de Yang Fudong, em 2006? A vegetação exuberante desse jardim botânico sensorial, com seus paus-ferros, palmeiras-imperiais, cactos, paus-mulatos, ciprestes e mangueirais, torna realmente difícil a localização geográfica e temporal dessa história.
Na terceira parte desse enredo, o que era impressão torna-se movimento. Ainda assim, mínimo. Vulto. O corpo que espreitava com autonomia e aspirava à liberdade agora balança em suspensão atemporal. Presa de armadilha? Corpo que pende. Motivo de meditação. Estamos longe de um desfecho.
A mata é pano de fundo para um enredo incerto. A deriva, a negação da civilização, a fuga, a alienação, a tipologia do artista viajante, enfim, integram a bagagem carregada pela mulher de identidade dissimulada da ficção de Katia Maciel.
Suspense, um projeto de cinema-situação, integra pesquisa de Katia Maciel sobre níveis simultâneos de narrativa. Na individual na Zipper Galeria, a artista elabora mais um capítulo de seu transcinema, atravessando a performance e entrando no terreno do texto poético.
A ação e o desenvolvimento dramático, aqui, se dão de forma espacializada, expandindo-se para além das cenas inscritas em fotografias, vídeos e videoinstalação. O enredo que ocupa o espaço da galeria teve um preâmbulo no ambiente das mídias impressa e digital e no espaço urbano, na forma de cartazes lambe-lambe.
Nos cartazes, a mulher de identidade dissimulada inscreve suas notas de viagem, que funcionam, afinal, como mensagens colocadas dentro da garrafa e atiradas em alto-mar. Essas pistas, que conspiram a favor de sua eventual localização, ganham certo sentido quando alinhadas em parede de galeria. Mas não revelam seu paradeiro. Uma caixa com ar, uma corda, uma carta, duas palavras e caixa de luz. A experiência da vertigem se completa em Verso, instalação-dispositivo que retém o espectador desse filme-situação entre a mata e um espelho. Transformada em imagem, percebo que o tempo dissimulado da ficção é simultâneo ao meu tempo real. Como o sopro de AR é simultâneo ao feixe de LUZ, dentro de caixas. Ou seriam cartas?
Paula Alzugaray é crítica de arte, curadora e editora da revista Select.
DISSUSPENSE: A SUMMARY
Paula Alzugaray
Paula Alzugaray
A letter arrived in the mail this morning. No, it was a box. I thought I’d heard a noise coming from inside. The sound of a train sliding across tracks. The sound of a shriek, or perhaps a mosquito. I jarred it. Opened it. Through a crack, I could see there was AIR inside. Fresh, green, the smell of an unknown earth. And a rope, which fell to the ground and escaped through the grass, leaving — in the guise of a trail — a snakelike impression disappearing with no distinct direction.
A box containing air, a rope and a letter.
Out of the box — or could it have been out of the letter? — there escaped words: waiting, stalking, vestige, calculation, theory, perspective, shelter, shadow, vertigo. With no self-evident link that could mould linear sense, the words suggested a poetic summary of a film yet to be made. They referenced a woman lost in paradise, who sent photographs — or frames — as clues to her possible whereabouts. Frame 1: Stalking. In an atmosphere of sleepwalking, of alienation or hallucination, an unidentified woman delves into green environs, apparently in search of an idea of freedom. Or maybe she is only dreaming.
Frame 2: Waiting. A second later — or before —, a woman slips as she advances onto nothing, leaving on the rarefied air of the jungle an open-ended idea.
What could have drawn her to this forest? To what extent is she following the trail of other adventurers and excursionists who have lost themselves in the jungle in search of Eldorado, paradise lost, or in the romantic pursuit of a state of forgetfulness, a retreat where one could meditate, write poems, devote oneself to the pleasures music and the reinvention of an ideal life?
To what extent is this unidentified woman retracing an artisticanthropological experiment attempted by Flávio de Carvalho, who — in 1958 — went on an expedition to the Amazon intending to make a semi-documentary film on the tale of a White Goddess who lived in the jungle? In the furthermost clearing of this uncharted jungle, she would then be reunited with the drifting Brazilian “hero without any character.”
Or is she the rebellious member of a group of seven intellectuals who sought refuge in a bamboo forest, originally in 3rd Century BC China, only to reappear much later in Yang Fudong’s 2006 work? The lush vegetation of this botanical garden of the senses, with its ironwoods, imperial palm trees, cactuses, “capirobas,” cypresses and mango tree groves, actually makes it difficult for us to place this story in geographic and temporal terms.
In the third act of the plot, what began as an impression is turned into movement. A modicum of it, still. A shadow. The body that autonomously stalked about, aspiring to freedom, now swings in timeless suspension. Caught in a trap? A swinging body. A motif for meditation. How far we are from a denouement.
The “jungle” serves as backdrop for an uncertain plot. The drifting, the denial of civilization, the escape, the alienation, the typology of the itinerant artist, all of this is part of the baggage carried by this unidentified woman in Katia Maciel’s fiction.
Suspense, a situation-cinema project, is part of Katia Maciel’s research on simultaneous narrative levels. In her one-woman exhibit at Zipper Galeria, the artist elaborated one more chapter of her trans-cinema, moving across performance and entering the domain of poetic text.
Action and plot development occur here in a spatialized manner, expanding beyond the scenes inscribed in photographs, videos and video-installations. The plot that takes up the gallery’s space had its preamble in the domain of printed and digital media and in urban space, in the form of street posters.
In these posters, the unidentified woman inscribes her travel notes, which function as messages placed in bottles and hurled onto sea. These clues, which conspire in favor of her eventual whereabouts, do acquire a certain sense when aligned on gallery walls. But they do not reveal where she is. A box containing air, a rope, a letter, two words and lightbox. The experience of vertigo is completed in Verso, an installationdispositif which retains the spectator of this situation-film between the woods and a mirror. Transformed into image, I realize that fiction’s “dissimulated” time runs simultaneous to my real time. Just as the breath of air is simultaneous to the shaft of LIGHT inside the boxes. Or could they be letters?
Paula Alzugaray is an art critic, curator and editor of Select magazine.
A box containing air, a rope and a letter.
Out of the box — or could it have been out of the letter? — there escaped words: waiting, stalking, vestige, calculation, theory, perspective, shelter, shadow, vertigo. With no self-evident link that could mould linear sense, the words suggested a poetic summary of a film yet to be made. They referenced a woman lost in paradise, who sent photographs — or frames — as clues to her possible whereabouts. Frame 1: Stalking. In an atmosphere of sleepwalking, of alienation or hallucination, an unidentified woman delves into green environs, apparently in search of an idea of freedom. Or maybe she is only dreaming.
Frame 2: Waiting. A second later — or before —, a woman slips as she advances onto nothing, leaving on the rarefied air of the jungle an open-ended idea.
What could have drawn her to this forest? To what extent is she following the trail of other adventurers and excursionists who have lost themselves in the jungle in search of Eldorado, paradise lost, or in the romantic pursuit of a state of forgetfulness, a retreat where one could meditate, write poems, devote oneself to the pleasures music and the reinvention of an ideal life?
To what extent is this unidentified woman retracing an artisticanthropological experiment attempted by Flávio de Carvalho, who — in 1958 — went on an expedition to the Amazon intending to make a semi-documentary film on the tale of a White Goddess who lived in the jungle? In the furthermost clearing of this uncharted jungle, she would then be reunited with the drifting Brazilian “hero without any character.”
Or is she the rebellious member of a group of seven intellectuals who sought refuge in a bamboo forest, originally in 3rd Century BC China, only to reappear much later in Yang Fudong’s 2006 work? The lush vegetation of this botanical garden of the senses, with its ironwoods, imperial palm trees, cactuses, “capirobas,” cypresses and mango tree groves, actually makes it difficult for us to place this story in geographic and temporal terms.
In the third act of the plot, what began as an impression is turned into movement. A modicum of it, still. A shadow. The body that autonomously stalked about, aspiring to freedom, now swings in timeless suspension. Caught in a trap? A swinging body. A motif for meditation. How far we are from a denouement.
The “jungle” serves as backdrop for an uncertain plot. The drifting, the denial of civilization, the escape, the alienation, the typology of the itinerant artist, all of this is part of the baggage carried by this unidentified woman in Katia Maciel’s fiction.
Suspense, a situation-cinema project, is part of Katia Maciel’s research on simultaneous narrative levels. In her one-woman exhibit at Zipper Galeria, the artist elaborated one more chapter of her trans-cinema, moving across performance and entering the domain of poetic text.
Action and plot development occur here in a spatialized manner, expanding beyond the scenes inscribed in photographs, videos and video-installations. The plot that takes up the gallery’s space had its preamble in the domain of printed and digital media and in urban space, in the form of street posters.
In these posters, the unidentified woman inscribes her travel notes, which function as messages placed in bottles and hurled onto sea. These clues, which conspire in favor of her eventual whereabouts, do acquire a certain sense when aligned on gallery walls. But they do not reveal where she is. A box containing air, a rope, a letter, two words and lightbox. The experience of vertigo is completed in Verso, an installationdispositif which retains the spectator of this situation-film between the woods and a mirror. Transformed into image, I realize that fiction’s “dissimulated” time runs simultaneous to my real time. Just as the breath of air is simultaneous to the shaft of LIGHT inside the boxes. Or could they be letters?
Paula Alzugaray is an art critic, curator and editor of Select magazine.