TRANSCINEMA
Alberto Saraiva
Alberto Saraiva
O trabalho de KM tem sua origem no cinema. O cinema é abordado, inicialmente, a partir do bloco teórico gerado desde sua invenção. Num segundo momento, KM começa a desenvolver saídas para reconfigurar um cinema contemporâneo; aquele que envolve desde assimetrias formais até outro, interativo, em que a narrativa é construída junto com o espectador. Esses itens fazem parte do conjunto de sua obra. Ela cunhou o termo transcinema dentro de um programa de teoria e prática; uma abertura possível para a ideia de cinema se ampliar e ganhar outros tantos formatos e interações intersticiais.
O que primeiro chama atenção em seu trabalho é que a imagem procede de ações performáticas e está contaminada pela linguagem cinematográfica. Essa contaminação reverbera na fotografia e no tempo de seus trabalhos, o que cria uma camada especial para a videoperformance. Isso se completa em vários outros dados que
a artista vai acrescentando para a melhor contextualização de sua obra; são diversos pontos que confluem para uma vivência em torno do cinema, ou melhor, do transcinema.
Evidentemente, KM está marcada pela vigência plena de um cinema que desafia seus limites no âmbito da interatividade. Entretanto, nos parece que ela opta não exclusivamente por esse viés, mas por outro caminho no qual o cinema intercepta outras linguagens, como o vídeo e a poesia.
KM já vinha abordando as aproximações e os afastamentos com relação à linguagem cinematográfica. Esse ir e vir não deixa de ser um espaço aberto por ela, e talvez seja nesse espaço de aproximar-se e afastar-se que sua obra se constrói. Certamente o cinema convencional deixou de bastar à artista, o que endossa seus acréscimos permanentes de outras linguagens. Contudo, ela parece sentir-se presa ao cinema por uma devoção especial.
Quando observamos suas obras em seu conjunto total até 2018, percebemos que há um feixe-imagem ao qual ela adicionou outra camada de significação: o tempo, que considero ter impactado tanto suas performances quanto sua velocidade videográfica. Há ali um tom búdico a que vários de seus trabalhos aderiram. Assim, esse feixe-imagem se amplia para um feixe-imagem-búdico. É daí que emana uma sequência de obras que oscilam entre o que é o estático e o que é o movimento; entre o tempo e sua invenção.
Diante disso, a natureza da obra ― a qual se distingue por seu silêncio ― opera a partir de sensíveis movimentos.
Sua comunicabilidade evoca intimidade ou a manifestação de uma digressão sensível, interna.
Sua comunicabilidade evoca intimidade ou a manifestação de uma digressão sensível, interna.
Talvez o ideal dessa obra seja que nos coloquemos à sua disposição; à disposição de seu tempo, de sua imagem, como fazemos com as coisas, naturalmente, como estamos ligados a elas sem que percebamos. Essas conexões naturais sobre as quais a obra fala nos evoca Giordano Bruno quando diz que “no Universo, as coisas são ordenadas de tal modo que estejam em certa relação recíproca, tal qual num certo fluxo contínuo, como se pudesse se dar uma progressão de todas as coisas a todas as coisas”. Na perspectiva de KM tudo o que é cinema tende a expandir-se entre imagem, poesia e sujeito. Algo de oriental a distingue e aproxima de poemas como este de Bai Juyi [772-846].
É flor, ou não. É bruma, ou não. À meia-noite vem De madrugada vai. Chega, devaneio, vernal, efêmero. Parte, neblina, matinal, sem traço.
Alberto Saraiva é curador do Centro Cultural Oi Futuro.
TRANSCINEMA
Alberto Saraiva
Alberto Saraiva
KM’s work has its origins in cinema. Initially, her work approached cinema from the theoretical grounds that have evolved since its invention. At a later moment, KM begins to develop ways-out in order to reconfigure contemporary cinema; a cinema ranging from formal asymmetries to another, interactive one, where narrative is constructed alongside the spectator. These traits belong to her work entirely. She coined the term “transcinema” within a practical-theoretical programme; a possible opening through which the idea of cinema could amplify itself and acquire so many different formats and interstitial interactions.
What first calls our attention in her work is that image derives from performative actions and is contaminated by filmic language. This contamination reverberates in the photography and the timing of her pieces, which creates a special layer for videoperformance. This finds completion in several other traits the artist adds to better contextualize her own work; these are several points that converge to an experience of cinema, or better still, of a transcinema.
Evidently, KM seems marked by the complete activity of a cinema that challenges its limits as for interactivity. However, it seems to us she does not opt exclusively for this perspective, but another path in which cinema seems to intercept other languages, such as video and poetry.
KM had already been addressing approximations and hiatuses vis-àvis cinematographic language. This coming-and-going is actually a space prod open by herself and it is perhaps in this space of coming and going that her work is built. Certainly conventional cinema has ceased to be sufficient for the artist, something attested to by her permanent borrowing from other languages, although she seems caught in cinema through a special devotion.
When we observe the sum total of her artworks, spanning to today, 2018, we see an image-beam to which she has accrued another layer of meaning: time, something I consider to have made an impact both on her performances and her videographic velocity. There is a buddhic tone there to which several of her pieces have adhered. Thus, this image-beam amplifies itself into a buddhic-image-beam. It is from there that a sequence of artworks oscillating between static and movement, between time and its invention, emanates.
Taking this into consideration, the nature of the work ― made distinguishable by its silence ― operates by way of sensitive movements.
Its communicability evokes intimacy or the manifestation of a sensitive internal digression.
Maybe, this work’s ideal is that we place ourselves at its disposal, at the disposal of its time, its image, as we do with things, naturally, the way we are attached to them without taking notice. These natural connections the works speak of evoke Giordano Bruno when he states that “in the universe, things are ordered in such a way that they stand in reciprocal relation, as though in a certain continuous flux, as though a progression of all things to all things could take place”. In KM’s perspective everything that is cinematic tends to expand between image, poetry and subject. Something oriental sets her apart while at the same time approximating her with poems such as this one, by Bai Juyi (772-846).
Flower, no flower. Mist, no mist. Arrives at midnight And leaves at dawn. Arrives like a spring dream ― how many times. Leaves like a morning cloud ― nowhere to find.
Alberto Saraiva is the curator of Oi Futuro.